sábado, 10 de março de 2012

Uma insignificante alegoria de coisas significantes

Logo que cheguei a Portugal os olhos prostraram-se perplexados com um mundo novo, ainda completamente inédito à minha visão. Estava eu no velho continente a procurar pelo novo, por aquilo que pudesse encontrar de diferente, tentando descobrir o que seria capaz de abrir meus horizontes. Procurando o novo, não pude deixar de mirar meus olhos no já conhecido, mas agora um pouco estranho pra mim. Não eram as mesmas coisas de outrora: quando não era por tudo diferente, o familiar me remetia às mudanças. Tudo mudou nas coisas, naquilo que meus olhos podiam alcançar, na vida. Foi então que notei aquele coração branco num fundo vermelho, nem um pouco estranho para um goiano do pé rachado, que por diversas vezes teve de pedir arrego do sol escaldante no gelado sabor de um Kibon. Mas ainda que conhecido, algo não estava certo: e esse nome? Abaixo do coração, o nome “Olá”.
Não que Portugal opere a estranheza do mundo oriental, russo ou muçulmano. Muito pelo contrário, afinal as marcas históricas de ligação da antiga metrópole com a terra da Tropicália são constantemente notadas e reafirmadas. Muito de Brasil se faz presente na terra lusitana. Por outro lado, contudo, diferenças existem e não são poucas. Desde as dificuldades (que com um pouco de boa vontade, logo se mostram passageiras) em compreender outro modo de pronunciar a mesma língua, passando por diferenças no próprio vocabulário dessa língua (acostume-se: em Portugal retira-se o fiambre do frigorífico para preparar o pequeno almoço, antes de apanhar o autocarro para ir ter com os amigos no liceu; no Brasil retira-se o presunto da geladeira para preparar o café-da-manhã, antes de pegar o ônibus para encontrar os amigos no colégio; percebeu/entendeu?), até diferenças subjetivas de cada povo. Sair da terra do samba fogoso do Carnaval e chegar no território do choroso fado, conota (com os perigos comuns a qualquer generalização) deixar para trás um povo feliz, capaz de rir nos momentos de maior tristeza, e encontrar um povo sério e um pouco amargo, que sempre conjuga o verbo no infinitivo (“estou a falar com aquele rapaz”/”ela está a cozinhar”), exceto em uma situação: quando indagado “e como está a vida?”. A resposta: “levando”.



Fazer intercâmbio na Faculdade de Direito da quase milenar Universidade de Coimbra (UC), foi a chance que tive de realizar muitas coisas para além do simples estudo. De todos os ganhos que tive, entretanto, o mais importante não foi na seara acadêmica, foi um ganho pessoal, de vida. O que me foi mais valioso durante os seis meses em que vivi em Coimbra foi me dar conta de que eu não estava em Goiânia, de que nem tudo era como é em Goiás e de que o mundo não é igual ao Brasil. Sentir na pele o quão plural, diferente, miscigenado e complexo é esse “mundão de Deus” foi, para mim, muito mais importante que as cadeiras cursadas na UC. E realmente senti, desde o início, assim que tive de dividir uma República com um alemão, um suíço, uma italiana, uma portuguesa, um brasileiro, uma belga e um esloveno (e desde aqui já começava a sentir a pluralidade na qual estava me metendo). Se Goiânia era pequena demais para mim e queria conhecer novas culturas, novos hábitos, outras palavras, visões diferentes e horizontes mais amplos, ter vivido em Portugal foi essencial.
Acredito que qualquer experiência inovadora nos dá ganhos inimagináveis. Um intercâmbio nos Estados Unidos, na África do Sul ou no Japão, sem dúvida seriam por demais significativos. Creio, contudo, que o contato com o desigual é ainda mais intenso quando se vai estudar na vetusta chamada Europa. Uma vez em solo europeu as possibilidades são infinitas e a chance de se deparar com o inusitado almejado é deliciosamente maior. Foi isso o que senti: que havia chegado à Europa, não apenas em Portugal. Além da “terrinha”, sabia que poderia conhecer sua vizinha ibérica, ou o charme do país da Rainha, ou a imponência de um lugar outrora dividido por um muro, quem sabe viver a elegância de se tomar um cafezinho mirando a Torre Eiffel, ou o Coliseu, talvez um passeio à Escandinávia, ou uma viagem mais ousada ao Leste Europeu, sem se esquecer dos encantos dos Alpes Suíços ou da exuberante história a saltar aos olhos na Grécia. É tanta coisa que o triste é a necessária amputação da escolha. Tinha de escolher, afinal não me seria possível abraçar o mundo todo em apenas um semestre.
Das quatro cadeiras cursadas na UC, talvez uma das que mais me tenha despertado a atenção foi “Direito da União Europeia”. Eu estava estudando a formação da atual Europa... na Europa! Longe da aridez de se estudar o Direito Europeu numa sala de aula no cerrado brasileiro, lá estava eu, entendendo como tudo o que estava vivendo havia se configurado e continua se desenvolvendo. Ainda hoje não sei se eram as aulas que me ajudavam a compreender melhor o fascínio do continente no qual pisava ou se, em contra-partida, era a prática do dia-a-dia que me dava um verdadeiro estudo de campo para tudo o que estudava. O que sei é que estando na União Europeia (UE), a magia da moeda única me proporcionou viajar a vários lugares apenas com  minhas notas de Euro, a carteira de residente me permitiu entrar e sair de Itália, Espanha, França e Alemanha sem quaisquer burocracias, e a identificação de estudante me deu entrada gratuito no Museu do Louvrée e no Museu do Prado.
A tamanha grandiosidade, sentida em cada suspiro quando me vi no coração da UE, em Bruxelas, entretanto, também me mostrou suas fraquezas. Apenas quando tive um vôo cancelado é que me dei conta de que estava em uma Europa ofegante, no olho do furacão de uma crise. No dia 24 de novembro tinha um vôo marcado para Londres, frustrado porque na mesma data ocorreu uma Greve Geral em Portugal. Consegui viajar à cidade das Olimpíadas aos trancos e barrancos, para uma semana depois saber que era a vez do Reino Unido inteirinho entrar em paralisação.
As marcas da tensão de uma crise efervescente estavam (estão) por todos os cantos e a pedido de uma grande amiga que, também em busca do novo, abandonara Goiânia rumo a São Paulo, em cada cidade que visitei procurei captar em fotografias um pouco do submundo, por vezes escamoteado ao olhar desatento do turista, de contestação, reivindicação e luta que ia encontrando. E encontrei uma manifestação pró-Galícia em Santiago de Compostela, uma passeata por boicote em Dublin e uma assembleia pró-Síria no gelo de -34ºC da capital norueguesa, Oslo. Encontrei também uma orquestra de músicos populares no metrô de Paris, uma cidade elegantemente contrastante: nunca imaginaria que no mesmo lugar em que veria a Monalisa, também iria ver placas com os dizeres “Cuidado com os batedores de carteira”.
Poderia seguir dizendo que encontrei muitos outros lugares, como as deliciosas águas de Veneza ou os canais da instigante Amsterdam, mas seria insuficiente porque, acima de tudo, encontrei a mim mesmo. Era o que dizia a trilha sonora de minha viagem à Bristol, onde, num reencontro com o passado, pude dar um abraço apertado num grande amigo que, pelas brincadeiras do destino, também não estava mais em Goiânia. Mas, lá estávamos nós, em Liverpool: eu e meu amigo na cidade de minha banda preferida, andando no Magical Mystery Tour e terminando o dia no The Cavern Club. “Find yourself”.
Minha primeira viagem para fora de Portugal foi à Itália e foi quando cheguei em Roma e me deparei com o familiar coração branco num fundo vermelho, mas dessa vez com o nome “Algida”, que percebi onde realmente eu estava. Podem os mais sérios, os mais científicos e os menos descontraídos, se queixarem: “mas como assim? Só foi perceber a diversidade da Europa por causa de uma marca de sorvete?”. Não, meus amigos, não é isso. Sei que dar uma grande importância apenas a uma marca de sorvete é demasiado exagerado. Mas, peço: não me leiam literalmente, a alusão ao “Kibon” é uma alegoria. Ou melhor: uma rica alegoria. A cada cidade descobria um país novo e um outro nome: Frigo (Espanha), Miko (França), Langnese (Alemanha), Wall’s (Inglaterra), HB (Irlanda). Isso mesmo: país diferente, nome diferente. Para muitos isso poderia passar despercebido, mas para mim, estudando a UE, as diferenças na nomenclatura do sorvete apontavam para a gigantesca gama de diferenças que borbulham no caldeirão multicultural europeu. A unidade na pluralidade. O que é senão o reconhecimento da mesma marca pelo símbolo em comum, sem deixar de lado os aspectos locais refletidos em nomes que de alguma forma remetem a aspectos nacionais? O coração no fundo vermelho, a bandeira azul com estrelas douradas. Depois de acompanhar in locu tantas diferenças (a caliente Espanha, a elegância francesa, a simpatia italiana, a bebedeira irlandesa, as delícias da culinária belga, a imponência do estilo alemão, a noite inglesa, as ciclovias neerlandesas, etc.) e dar conta de que apesar dos pesares, da diferença se fortifica a integração, foi impossível não sair das aulas do professor Jónatas Machado um europeísta de carteirinha.



A alegoria do sorvete também me fez pensar um pouco no meu Brasil: creio que praticamente todos em solo brasileiro devam pensar que a marca se chama Kibon e que é única, tal qual Coca-Cola ou McDonalds. Levam a vida a pensar isso (não que isso por si mesmo tenha lá grande relevância). Para mim isso representa um significado maior: não foram poucas as vezes em que me vi obrigado a praticar um inglês para manter contato com árabes, croatas ou chineses; numa distância equivalente a percorrida pelo brasileiro que vai de Goiás ao Rio de Janeiro (falando apenas o português!), poderia ir de Portugal à Suíça, passar por Espanha, França e Alemanha, encontrando uma infinidade de línguas e culturas diferentes. Encontrando nomes diferentes para o mesmo sorvete. Ou seja: um jovem português que se arrisca a fazer algumas viagens, por exemplo, por certo não pensará que a marca se chama Olá. E para você: o que isso representa?
Mergulhado no novo, ainda tive a oportunidade de aprofundar ainda mais o conhecimento do desconhecido. E lá estava eu voando rumo à África (outra barata facilidade permitida pela Europa). Em Marrakesh conheci a Medina, as letras do alfabeto l’arabic, não vi vestígio algum de cristianismo e fiquei anestesiado ao ver o pôr-do-sol de cima de um camelo em pleno deserto do Saara. Foi a expressão final de seis meses em que estive absorto, em contato com coisas que jamais pensei que viria.
Na Europa aprendi que o mundo não fala (apenas) português e que muitas vezes é preciso fazer-se entender. É preciso se comunicar. É preciso falar inglês. Na Europa conversei com um grupo de libaneses, com meninas da Coréia do Sul e com amigos belgas. Na Europa conheci pessoas novas e aprendi novas lições. “Você não está em Goiânia e nem precisa morrer em Goiânia”. Na Europa peguei um vôo para o deserto. Na Europa, ao encontrar o novo, a saudade doeu no peito e foi então que percebi o quanto gosto do meu Brasil e como amo minha terra. Em um semestre me encontrei. Sou brasileiro, sou goiano, sou europeísta. Sou do mundo.



Agora, voltando ao meu lugar, ao meu Brasil, à minha Goiânia, a expectativa de descobrir novos lugares, outras culturas e diferentes países, permanece ainda mais aflorada no peito. Primeiro quero conhecer outros países da América Latina. E uma coisa já me deixa curioso: como chamam os argentinos, os chilenos e os paraguaios aquele sorvete com um coração branco num fundo vermelho?




sábado, 21 de janeiro de 2012

Quando me vi tendo de viver comigo apenas (e com o mundo)




QUANDO ME VI TENDO DE VIVER COMIGO APENAS 
(E COM O MUNDO)


Conhece-te a ti mesmo
E se eu não gostar do que encontrar dentro do espelho?
Ignora-te a ti mesmo
Alone
Eu só queria esquecer tudo
Mas, como, se quando olho ao redor só vejo minhas sombras?
Eu queria poder de tudo lembrar
Mas, como, se meu reflexo se dissolve na solidão de um espelho?
Tardes, noites, sozinho, desligado, alheio, distante.

Eu, eu mesmo: e eu again
Eu, eu mesmo: against me
Eu fui e deixei meus amigos
Agora estes vão e fico aqui (sem eles)
Tenho pena de mim?
Não tenho pena de ninguém.

Continuo aqui, sempre assim
Sempre do mesmo jeito: nunca assim
Tão solúvel em pensamentos que vão e voltam,
como a transpassarem oceanos
Oceanos que estão dentro de mim
Abismos que me separam de mim e do outro
O que é senão o outro aquilo que vejo e penso ser, pra mim?
Não é nada além de um Mondego prateado pela lua

Aquelas noites parecem estar a quilômetros da memória
A quantas milhas, então, estariam as minhas lembranças?
Quantos céus me separam do retorno?
Eu retornei a mim mesmo
E agora, consciente de que nunca sereno estarei,
o que me resta?

Agora me resta um cubículo a ser abandonado,
Me resta lugares a serem conhecidos,
Me resta surpresas a serem vividas,
Me resta despedidas a serem choradas,
Me resta abraços a serem dados, one more time,
Me resta acabar com esta espera.

Ayer, maybe, eu deveria ter ido.




domingo, 15 de janeiro de 2012

E o que há depois do sétimo dia?



Quando li, quase que descompromissadamente, em uma publicação no facebook, uma menina dizendo que “Inquietos” havia sido o segundo filme que conseguira fazê-la chorar, talvez por curiosidade, ou uma tentativa de encontrar o que ela havia sentido, decidi vê-lo. Confesso que também não entrego facilmente minhas lágrimas a todo filme que vejo. Sem levar em consideração algumas poucas lágrimas ora aqui, ora acolá, o único filme que realmente conseguiu arrancá-las em profunda intensidade foi o francês “Le Huitième Jour”, desde então minha película de cabeceira. O que mais me conquistou, anos atrás, em “O Oitavo Dia”, foi sua maravilhosa quebra de expectativa, deliciosa na profundidade da leitura apresentada. Desconstrução: pensava que seria mais um filme a tratar dos portadores da “síndrome de Down”, a barganhar lágrimas num melodrama de tolerância e superação. Ledo engano. Ao longo de seus 118 minutos sequer foi pronunciada a palavra “síndrome”, pois retratá-la não foi, nem de longe, o objetivo do longa em questão. Era um filme a refletir a vida e a forma como a encaramos no turbilhão de um dia-a-dia estressante, que nos rouba o sorriso que deveríamos dar para a amada todas as manhãs e o tempo para um sanduíche com as filhas depois do colégio. Era Harry, era Georges.
A sensação que tive assim que terminei de assistir “Inquietos” foi exatamente essa: uma quebra de expectativas. Ao ler a sinopse pensei que veria uma digressão sobre a vida e a pericidade da mesma. Uma poética sobre o tempo a se escorrer. Talvez um melodrama sobre uma jovem à beira da morte. Findados os 91 minutos, entretanto, estive, de novo, de frente com outra desconstrução: sim, o tempo fala sobre vida e tempo, mas este não foi, nem de perto, a temática que mais me despertou interesse. Fui conquistado por uma alegoria do amor. Isso mesmo, apesar da vida e da morte, o filme é sobre o amor.
Aqui, temos Enoch, temos Hiroshi. O japonês é o emblema da morte, já consolidada, há décadas. Um kamikase morto na segunda Grande Guerra, que agora “aparece” para Enoch. A simbologia da morte, contudo, perpassa também o garoto. Morto por três minutos, em coma, após o falecimento de seus pais em um acidente de carro, Enoch, de volta à vida, estabelece uma forte ligação orgânica com sua antítese. Passa os dias a freqüentar clandestinamente velórios de estranhos. Impossível foi não lembrar o instigante “Clube da Luta”, quando fui apresentado ao rapaz que migrava de reuniões a reuniões dos mais variados grupos de pessoas “tortas”, com os seus mais diversos problemas e idiossincrasias. O que Enoch faz ali? Uma pessoa “torta”, um anti-herói, desconcertante. Um penetra de funeral, que saiu da escola, que não tem carro, e com um amigo morto.
“Torto” (ou, inquieto/a) talvez também seja o melhor adjetivo para se referir à Annabel. Aqui, de novo, a relação com a morte: a menina tem câncer e expectativa de vida – três meses. Somos, então, ao longo do filme apresentados a um panorama formado por símbolos sempre a remeteram a morte: as formigas que se prostram perto de cadáveres e ali desovam e alimentam seus filhos, num exercício quase que de frieza; o pássaro que intui sua morte e ao acordar no dia seguinte, espantado, põe-se a celebrar a vida; o corpo no necrotério, tão singular em uma história tão não-contada.
Mas, qual é, afinal, o “papel” da morte (tão presente, então, porque não personificada também?) na construção do filme? Penso que o mesmo que George, ao adentrar à vida de Harry, representa a este. A morte não é a personagem principal da película. As personagens centrais são Enoch e Annabel: um menino infantil, com um amigo imaginário, permanentemente triste, que invade velórios, que joga pedras no trem a passar, que não conversa com sua tia; uma menina que se veste como um rapaz, que perde seu tempo lendo sobre pássaros aquáticos, que na iminência da morte não se apega fervorosamente a um deus e sim vangloria o bom Charlie, que esboça desenhos de formigas. Estranhos, patéticos, imperfeitos? Verdadeiros. Inquietos. E onde está o amor senão na inquietação?
Com lindos diálogos sobre vida e morte, a me remeter a serena conversa entre Uxbal e seu pai no igualmente “torto” (até no título) “Biutiful”, “Inquietos” é uma poesia de imagens na qual, sim, realmente as lágrimas rolam, onde viver é fácil, morrer é fácil e amar é difícil. E no oitavo dia, deus levou Annie e sentiu que o amor é belo.


sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Eu não sei na verdade quem eu sou



Incômodo. Outra não seria a palavra mais apropriada para sintetizar o que senti ao final do filme “A Pele que Habito”, do prestigiado espanhol Pedro Almodóvar. Tal incômodo, de fazer o espectador se contorcer todo na tentativa de digerir tudo o que está passando a sua frente, me pareceu causado, sobretudo, pelo confronto. Ao desenrolar do filme é inevitável não nos colocarmos no lugar da personagem Vicente, vestir a sua pele. Quem é posto cara a cara com o espelho é mais do que a personagem, é o próprio espectador, que é lançado ao olho da velha indagação emblemática da esfinge: você conhece a ti mesmo? Ou pode ser devorado?
Pele. Revestimento. Proteção. Fragilidade. O nosso contato mais íntimo e direto com o mundo que nos rodeia. Nas deformidades traçadas em contato com esse ambiente, ora amistoso, ora perverso, fincadas e eternizadas em marcas, cicatrizes e queimaduras, definimos nossas digitais, indicamos aos outros quem somos. A sinalização do sujeito também se convalida ao próprio? A faceta da moeda é dupla: quem sou para os outros e quem sou para mim mesmo? A resposta talvez seja única. Talvez. Pode ser que não haja. Pode ser mensurável ou apreensível. Divagações à parte, a materialidade sugerida no filme é o que mais provoca: a deslocação é escancarada por uma cirurgia.
Os artifícios usados por Almodóvar para dar coesão à ideia proposta foram o que mais me prendeu. E o principal artifício foi o embasamento dado aos personagens em cena. Aqui ninguém é moçinho nem vilão. É possível, então, delimitar nesse contexto uma ética, uma moral, ou, mais a fundo, uma justiça? Inicialmente, Vicente é mostrado como o rapaz que estupra uma jovem, aparentemente perturbada, numa festa de casamento. Robert Ledgard é o pai da jovem abusada, que anteriormente estava internada em uma clínica de reabilitação, por ter presenciado o suicídio de sua mãe, que pulou da janela de sua casa. Na primeira oportunidade de ressocialização, o estupro. E a pele de vilão é dada a Vicente. Quando Robert seqüestra o jovem somos lançados ao questionamento: é justo? Tal indagação, já apresentada no igualmente bom “O Segredo dos Seus Olhos”, não é, entretanto, nem de longe, a dúvida mais instigante. É apenas o fio condutor; o estupro é um pano de fundo e adiante é praticamente redimido por outro estupro. Uma mórbida compensação.
O artifício estético de encadeamento narrativo colocado por Almodóvar (dessa vez muito mais feliz do que em “Abraços Partidos”, de estrutura também fractal) é o que resulta, materialmente, na transição de peles, papéis, máscaras. O olhar camaleônico que o espectador lança sobre um personagem não se equipara, também, ao olhar que um transeunte lhe projeta ao cruzar contigo na rua?
Transitando de 2012 a 2006, no desenvolver do filme, gradualmente as peças vão se encaixando num anestesiante e provocativo quebra-cabeças. Depois de seqüestrado e mantido em cativeiro, Vicente é submetido a uma cirurgia de mudança de sexo pelo cirurgião Robert. É então que nos damos conta de que a bela e sexy mulher do início da película é o boy que trabalhava em uma loja de costura. Mas, são a mesma pessoa? Quem é Vera? E, ainda, quem é Vicente? Quem sou eu? O que me define enquanto sujeito? As roupas que visto, os filmes que vejo, as músicas que ouço, as garotas que paquero, as brigas que venço, os livros que leio, as discussões que esquivo, os gols que marco? A pouco conversava com um amigo que me dizia que na Alemanha, após o escândalo do não-apagamento dos dados dos perfis do facebook e por uma provável utilização dos mesmos por analistas de empresas, alguns de seus amigos mudaram seus nomes na rede social, para não serem identificados. Um chegou até mesmo a apagar qualquer informação pessoal, deixando em seu mural apenas a informação: “Gender: male”. O gênero masculino, ou feminino, de acordo com aquele que agora me lê, é a informação básica que constitui nossa identidade? Qual, afinal, é a informação que o ser nascente Vera deixaria em sua página do facebook como alegoria de seu posicionamento no mundo, as digitais da pele de seu dedo? “Gender: female”?
Muitos outros aspectos despertados pela película poderiam aqui ser tratados, tal como a questão do reconhecimento com a imagem que sobre nós mesmos projetamos, tão presente na cena em que a falecida esposa de Robert tem de encarar sua nova identidade (nova pele) no reflexo da janela, ou a ligação que Vera projeta sobre Robert, em cima da qual poderíamos abordar intensos debates psicanalíticos. Mas, pelo pouco espaço a que devo me deter, sem dúvida, a impressão que mais se perpetuou em minha pele depois de assistir o filme de Almodóvar se iguala a tensão provocada pelas linhas de Lewis Carroll: “Tudo está tão esquisito hoje! E ainda ontem as coisas estavam tão normais... Será que durante a noite eu virei outra pessoa? Deixe-me pensar: Hoje de manhã, quando acordei, eu era a mesma pessoa? Tenho uma vaga lembrança de ter me sentido um pouquinho diferente. Mas se eu não for eu mesmo, a próxima pergunta é: Quem eu sou? Essa é que é a questão!”.


Qual das cápsulas? A azul ou a vermelha?



Now it's time to leave the capsule if you dare. A cápsula da canção de Bowie talvez seja o óvulo colocado a observação do cientista ou a carne exposta ao abrigo do vidro, transparente, mas acobertador. No longa-metragem de Tom Tykwer, contudo, a cápsula a ser rompida é a mesma que nos reveste enquanto sujeitos lançados a um mundo tão bem delimitado, com regras a serem seguidas, espaços a serem ocupados e uma normalidade a ser resguardada.
O filme “Drei” nos lança o desafio de radicalizar e romper, deixar para trás todos os valores tão bem consolidados que temos do que é normal, do que é aceitável, do que deve ser respeitado. Fugindo de qualquer discurso de tolerância, o filme vai muito mais além e realmente coloca em xeque a questão da sexualidade. Diplomático de forma alguma, “Drei” é profundamente poético, tanto em seu aspecto estético, com tomadas numa imensidão branca ou enquadramentos de três pequenas cenas a rolarem simultaneamente, quanto em sua materialidade que, em primeira e última instância, ousa. A sexualidade, a vida, os valores, as regras, a sociedade: tudo é desnudado e colocado em foco, num grande fundo branco. O branco é senão o puro, o transparente, não impregnado de regras e normatividades a estancá-lo.
A primeira impressão que me perturbou diz respeito ao novo. Apresentados a um casal que trás consigo o peso de vinte anos de vivência desde o primeiro beijo, refletido em uma rotina desgastante e constantes momentos de dissolução do romantismo de outrora, postos um a frente do outro como um fardo, pesado. Mas, aqui não é um lado que busca se conhecer (ou se reconhecer, se resgatar) em um terceiro elemento. São os dois lados. A dupla presença, entretanto, não existe. É o um ou é o três. Independentemente, ela encontra Adam e ele encontra Adam. A vivência a dois é apenas o pano de fundo a fomentar a necessidade de rompimento, que será entendida, dolorosamente ou não, no silêncio de uma sala de cinema, alone. Ou nas lágrimas a escorrerem depois de digerido o novo. É um verdadeiro parto com as velhas concepções que arraigadas em nossa própria construção de subjetividade se impregnam como uma pele a nos habitar. O novo que se relaciona com o velho. Não é atoa que um antigo caso se mostra paralelamente ao momento em que a primeira transa acontece.
E o filho teria, hoje, 17 anos. Como foram vividos, contudo, estes últimos 17 anos? No impacto da morte materna, a descoberta da pericidade da vida, a escorrer em um recipiente: aquele que do lado de fora estampa uma etiqueta com o dizer “normal”. Mas, esta é a normalidade? O que é, afinal, ser normal? Somos esse líquido contido e etiquetado? Devemos nos colocar nesse recipiente, enquanto nos vemos dissolver, como um testículo a ser amputado?
No olho do furacão de um Brasil borbulhando em discussões a respeito da possibilidade legal ou não do casamento homoafetivo, das críticas a lei da anti-homofobia, da pronunciação do STF a cerca da adoção por casais do mesmo sexo, “Drei” vai ao cerne da questão: o que tudo isso nos mostra não é a nossa obrigação de questionar, discutir e colocar em xeque os valores aos quais tradicionalmente fomos expostos? A sexualidade é mais ampla e complexa, e olhá-la unicamente sob o ângulo da heteronormatividade é questão de posicionamento, político, cultural e social, que trás consigo interesses a serem preservados.
Dias atrás, numa conversa de bar, o amigo de um amigo pôs-se a falar contra a “abertura à causa homossexual” no direito brasileiro. Citou, entre vários argumentos, que transitavam entre o racionalizável e o religioso, a defesa do que é natural. Ora, “Drei” questiona exatamente isso: “Às suas ideias deterministas de biologia”, é o que aquele que trás (trás? liberta? demonstra? Na verdade não trás nada, apenas ajuda a aflorar aquilo que vem da autodescoberta subjetiva) o “novo” diz ser preciso abandonar. Dizer adeus. Talvez seja a isso que a bancada religiosa de nosso velho país esteja precisando fazer: dizer good-bye.
No bojo de bons filmes que vejo atualmente a trazer à discussão a complexidade que faz parte de nossa sexualidade, como já apontada nos estudos de Kinsey, “Drei” me trouxe à lembrança o bom “Shortbus”. Ao questionar a fruição verdadeira do orgasmo e tudo o que isto compreende, em seu ponto de epifania, todas as luzes se acendiam. Aqui, em “Drei”, ao fazer o rompimento com a “naturalidade”, passamos a conhecer melhor “quem eu sou” e, em três, quem nós somos, todos nós. Em três as luzes se ligam. E abre-se ao fundo a música de Bowie. “Agora é a hora de sair da cápsula se você ousar...”.