segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A Igualdade é Branco Fosco


Um ano de sacrifício e, enfim, alcançara sua meta: chegava à Universidade de São Paulo, por ele tão carinhosamente chamada apenas de USP. O sonho de uma vida inteira, talvez dele, talvez de seus pais, mas uma vida inteira, uma vida que clamava novos ares. E assim o mineirinho do interior punha seus pés na grande capital. Inquieto, ainda se deslumbrando com a beleza de tudo o que via, cruzou o Tietê e chegou, finalmente, ao seu destino final: Armênia. Destino, parada ou morada. Ali passaria os cinco anos de seu curso. Os próximos cinco anos ou a próxima vida que chegara, para sua alegria e temor.
Com pouco dinheiro nos bolsos, teve de ir morar em uma república de estudantes. Acostumado com o mimo de sua casa, com as mordomias de sua mãe e com os chamegos de seu pai, agora, jogado em uma megalópole gigantesca, embasbacado com um ritmo frenético, saudade e medo chegaram quase instantaneamente, para o seu desespero.
Medroso, sim. Alguns colegas até o chamavam de boiolinha, diziam que ainda nem crescera direito, e lá ia o menino buscar refúgio nos ombros da mãe. Não que de tudo estavam errados: aos dezoito anos ainda dormia com a luz acesa. Não foi atoa, também, que a escuridão da república, toda noite, lhe botava um medo talvez maior do que tivera anos antes com um tal de bicho-papão. O pavilhão ao lado, no mesmo andar, toda noite atrapalhava sua tranqüilidade e apavorava seu sono. Decidiu, toda noite, levantar e deixar a porta um pouquinho aberta, daí que a escuridão se dissiparia, ao menos um pouquinho, com os feixes da luz que vinha do corredor que dividia os três pavilhões do mesmo andar. Mas a pequena abertura, com certeza, facilitaria os sons misteriosos e assustadores. Juntou uma graninha e comprou um fone de ouvido, algo simplório, mas funcional, que o ajudaria a manter a tranqüilidade do bezerro ao mamar nas tetas da mãe – agora a léguas de distância.
O dinheiro gasto para se comprar o fone, não qualquer fone, algum que desse jeito em seu medo, foi a gota d’água para o quase-fim do dinheiro do mês. Chegada em São Paulo, documentos a providenciar, coisas a comprar, os aluguéis a pagar, resultado: grana saindo ralo abaixo. Teria de cortar algum gasto. Escolheu: a alimentação. Se preciso fosse, faria fotossíntese, comeria ar, passaria fome, mas gastaria poucos reais.
Foi ao supermercado. Em verdadeira greve de fome, comprou poucas coisas, todas milimetricamente contadas. Sabia, por exemplo, que havia seis ovos e oito pedaços de carne. O pior é que, com o estômago roncando, talvez nem o medo mais desse as caras. Sai o medo e entra a inveja. Os colegas de mesmo pavilhão, sete sujeitos estranhos com quem dividia o mesmo lugar-no-mundo, sem grandes problemas financeiros, sempre chegavam com as mais variadas guloseimas. Eram doces, carnes, queijos, legumes e até importados. E na mesma sacola, um olharzinho meio de lado, beirando as comidas alheias e se esforçando para não babar frente a tantas iguarias. Teria que se contentar com a humilde comida que tinha à disposição. Afinal, fruto de uma conservadora e rígida educação, pautada no civilismo e no respeito mútuo pelos bons costumes, moral e integridade, jamais passaria pela sua cabeça – pela cabeça talvez, mas não pelo seu braço – mudar o destino de qualquer alimento.
Até aquele dia, em que, cansado, depois de uma manhã de intenso e cansativo estudo na USP, chegou até a geladeira e notou a triste ausência de dois pedaços de bife e de três ovos. Fruto de uma conspiração internacional, começou a traçar os suspeitos. Mas, só podia ser ele: o baiano. Desde o princípio que não ia com a cara daquele sujeito. Tão alegre, tão divertido, tão não-igual. Uma desigualdade afrontante. Foi ele.
Criado no seio da igualdade, ele, que cresceu ouvindo auspícios do gênero “trate todos com o devido respeito que lhe tratam”, decidiu o que iria fazer. Não por vingança, não. Por educação. Era seu dever educar o baiano folgado para que não mais fizesse aquilo e que não mais faltasse com o respeito aos demais. Abriu a geladeira, foi ao estoque do baiano e tomou-lhe três pedaços de bife e cinco ovos. Aproveitou e deu uma ligeira beliscada no queijo cheddar da carioca. Já haviam quebrado a civilidade mesmo...



No mesmo dia, ao entardecer, voltando da biblioteca, encontra sua morada em uma quase-assembleia. Era mais uma reunião. O baiano havia convocado. Dizia que estava surpreso com a conduta de alguém, que faltara com o trato igual perante os companheiros e, na calada, roubara-lhe comida. O mineirinho, talvez um pouco não-mineiro, não se fez de rogado e soltou verbos e adjetivos sobre o baiano. “Mas, como? Sei que foi você! Você, seu falso, que levantou durante a noite e roubou algumas de minhas coisas!”. Não, não havia sido ele e, depois de completamente provado, faltava ao mineiro arrogante apenas um buraco onde meter-lhe as fuças.
Mas, afinal, quem roubou sua comida? Indignado, agora já totalmente sem medo algum, encostou a cabeça no travesseiro e caiu no sono. No dia seguinte, dois bifes a menos. E o que fazer dessa vez? O colo da mãe estava a quilômetros de distância. Apenas entrou em seu quarto, e pôs se chorar. Tomou seu caminho, subnutrido, rumo a USP. Estou, voltou, não comeu e dormiu. Caiu no sono e nem se deu conta de que, pela abertura que continuava a deixar, dia após dia, o subnutrido do pavilhão ao lado, chegava até a geladeira e roubava o mínimo para saciar sua fome e algumas delícias a mais. Afinal, em seu pavilhão que não iria de fazer isso. Afinal, lá todos eram iguais.

domingo, 9 de outubro de 2011

Com Estranhos no Ninho



Foi então que o ônibus atravessou a Ponte de Santa Clara e o sujeito estava lançado, bruscamente, a um novo e desconhecido mundo. O que poderia ele esperar de tudo o que ainda estava por vir? De tão acostumado com uma vida fácil e seguro, agora, de malas ao chão, só poderia sentir uma coisa: medo. Quão pesadas eram, pesavam uma vida que tentava, ingenuamente, trazer na bagagem. Mas o táxi foi fácil de conseguir. As ajudas anteriores, ainda em sua terra, realmente conferiam: seria fácil se locomover naquela cidadezinha.
Em alguns minutos já estava lá, diante de seu novo lar. Mas, como assim novo lar? Ele já tinha um lar, aquele que sempre foi seu, sem saber. Quando foi criado, Deus, com seu poderoso dedinho, já havia lhe apontado: vá, cresça ali! Brasil. Tão bairrista seria que nem se daria conta disso. Agora, ali, contudo, soube.
Negócio firmado, dinheiro se esvaindo. Foi conhecer a cidade. Mas como é pequena! Como pode? Primeira constatação: não é comunista, é quase-neoliberal, adora a tecnologia e, sobretudo, as grandes megalópoles gigantescas. Em uma tarde já poderia conhecer a cidade inteira. Quase até as minúcias das escavações mais escondidas nos bairros mais afastados. O que faria, então, nos outros cinco meses e vinte e nove dias? Outras perguntas começaram a atormentar-lhe a mente: aonde estava a Anhanguera? E o Eixão? O Flamboyant? Por que tão poucas pessoas no ponto de ônibus? Por que as ruas são tão desertas assim? E esse silêncio? Aonde está a T-7? E a Assis? Cadê o Vitaminas? E o Moreirinha? O Serra, onde está? Cinema tem. Vamos lá. Mas, como assim? Intervalo de 7 minutos, dividindo o filme ao meio? Que porcaria! De qual mente tão tresloucada surgiu essa ideia? Vai ligar reclamando. Mas, como ligar de lá? Quantos números, quantos códigos, e que voizinha irritante da telefonista tão, tão, tão distante. Vai para o seu refúgio. Cadê o refúgio? A rota das caminhadas, cadê a Cascavel?
Decidiu se refugiar em sua nova casa. Nova? Sim, e novos familiares. Uma belga, um suíço, um alemão, uma italiana e um esloveno. Primeira indignação: como pessoas vão para um país sem saber falar a língua do povo que por lá, há trilênios, habita? Um português muito mal arranjado. Foi o primeiro passo para entender, na pele, o que tanto estudava nos livros a respeito da importância da linguagem. Foda-se o metal, a escrita ou o Estado. A História realmente começou quando ela foi parida: a linguagem. Segunda constatação: sua vida teria sido bem melhor se os seus pais o tivessem colocado num cursinho fabuloso de inglês quando era um pirralho. FISK, Wizard, Brasas, qualquer meio que lhe fizesse chegar ao sagrado fim de manter uma comunicação no mínimo irrisória com os seres humanos que iriam dividir, por seis meses, a mesma caneca.
Terceira constatação: o ditado “reclamar de barriga cheia” realmente guarda consigo algum sentido. E como ele reclama. Curso de inglês que nada. Essa não era e nem será obrigação de qualquer pai em qualquer época de qualquer lugar. E como os seus lhe deram uma vida confortável, só agora entendeu. Era preciso fazer compras. E que geografia... Do que adianta uma cidade ser tão pequena se o perto cansa feito um longe se está no topo de colinas e mais colinas tão íngremes e inclinadas? Compras no mercado, mercado no morro. Compras no morro, bolha no pé. E o que comprar? Agora era dona-de-casa? O macho-alfa da comodidade virou doméstica por subsistência. Um tanto de enlatado. Encarou o arroz, olhou-o nos olhos, mas amarelou. Saiu sem levá-lo. Primeiro desafio: cozinhar.
Organizou as compras no armário e na geladeira e partiu para o fogão. Será dessa vez? Não, preferiu usar o microondas. Estava com medo. E seria mais fácil. Mas percebeu que aquilo não serve de nada, apenas uma esquentada muito ligeira. Não é atoa que a comida ficou horrível. Quarta constatação: para se comer bem, é preciso se arriscar. Os dias se seguiram e decidiu arriscar: foi, realmente, cozinhar. Devidamente alimentado, voltou-se às burocracias que deveriam ser resolvidas. Depois de perdida quase uma semana para resolver coisas tão chatas, foi posto em cima da realidade em que se encontrava: faltava pegar a carteirinha do estudante. Sem delongas, apareceu requerendo o documento. “Apenas no horário de atendimento para Erasmus, das 13 às 15”. Indagou-a se estava ai. Sim, estava. E ela não poderia pegá-lo? Poder poderia, mas não iria. Teria de voltar no horário indicado. Descer e subir o morro. A batata da canela, sabendo que seria a real perdedora de toda a situação, coçou para não partir pra cima. Ficou na dela. Cadê o jeitinho? Segunda indignação: por que essa galera é tão fria?
As aulas na Universidade. Fazia tanto tempo que não pegava um livro pra ler. Já estava sentindo saudade. Empolgação. Nirvana. Ânimo. Realidade. Tapa na cara. A mesma. Frustração. Sim, as aulas eram infinitamente melhores, os professores mais bem qualificados. Mas, que distância, que frieza. Em pouco tempo, com as mãos já calejadas que tinha, percebeu que a dinâmica, embora com algumas recontextualizações, era a mesma: haviam os nerds, haviam os malas, haviam os neutros, haviam os professores chatos, os bons, os enturmantes, havia a política de cargos, havia a política estudantil. Mas, dessa vez com um outro olhar: observou tudo de longe, tão longe, seguro e protegido em seu obscurecer. Deu-se conta de que havia jogado e errado e no final das contas, Kelsen estava certo: a neutralidade. A neutralidade. A frieza. Na quinta aula já estava para ter um ataque. Respiração sufocada. Como ninguém perguntava nada? Ninguém tinha nenhuma dúvida? Não, espere ai... Alguém levantou o dedo: “Professor Doutor...”. Que bosta. E é performance. Mas, há algo mais performático do que isso? Pensou em tirar a camisa, a calça e a cueca. Subiria na mesa e rebolaria pelado. Não foi preciso. Deus, ouvindo suas preces, trouxe um enviado: um milagroso carro de som, talvez brasileiro, que, parado em frente à faculdade, disparou a cantar: “Tô ficando atoladinha, tô ficando atoladinha”. Odiava a música. Adorou. Seria capaz de entrar no YouTube e ouvi-la até raiar o dia seguinte. Quinta constatação: ele é sádico e adorou ver a cara de avestruz do professor, tão sério a procurar uma privada.
“Sou eu bola de fogo e o calor tá de matar”. Que calor. Saiu de sua terra suando as calças. Chegou no velho novo mundo para suar as calças. Calma, dizem que o frio começa apenas em novembro. Que inveja. E na sua casa (sua verdadeira casa) está chovendo... Que inveja. O maior show de rock music do mundo está lá, e ele aqui. Terceira indignação: Deus está de palhaçada? Em 2011 no Rio de Janeiro. Em 2012 em Lisboa. É uma brincadeira de pique-esconde? Mas, o único que se escondeu foi ele: saiu fugitivo e por isso não pôde estar na grande noite. Na noite deles. A consagração. Segundo desafio: não pensar.
Sem ninguém com quem travar um diálogo superior a três pensamentos, falou consigo mesmo e disse: “não há como ficar pior”. Houve uma festa. No pavilhão ao lado. A noite mal-dormida, com tamanha barulheira, foi acompanhada de uma manhã revoltante. Como tiveram audácia de ignorarem todo o trabalho que teve fichando seu nome nas compras levadas a geladeira? Como foram capazes de ignorar a tão sagrada, e hoje por ele respeitada, propriedade privada? Enfim, por que comeram o seu queijo e o seu presunto, e ainda metade de sua maionese? E deixaram os resquícios, como que há rir de sua cara. Quarta indignação: o ser humano é perverso e nele não se pode confiar, já dizia Saramago.
Será que havia batalhado tanto por aquilo? E o barbudo viu suas lágrimas e decidiu parar com a brincadeira. Ele já havia aprendido. A melodia da mudança começou com uma voz neerlandesa. É essa a língua que os suíços falam. Não sabia disso. Dos estranhos companheiros talvez o que mais saiba o português. Um papo começou a puxar. O papo se tornou um diálogo. E de onde menos se esperava veio a redenção: “cut the nails?”, perguntou. “No, cut the paper!”. Uma tesoura. “Isso, sim, yeh, uma tesoura”. Voltando ao quarto, pelo vão que saia do quarto da italiana, a viu chorar. E ficou alegre com isso. Percebeu que ela estava a falar com alguém pelo Skype. Talvez os pais, os amigos, ou o namorado. Não importa. Alguém que ficou em sua casa a esperá-la. E saber que ali, naquela casa, não era o único que assim estava e que, talvez, todos estavam no mesmo barco, lhe resgatou a alegria. Um empréstimo, uma alegria, o pôr-do-sol. E o nascer no dia seguinte. Dia de novas compras. E na lista estava ele, o arroz. A primeira refeição completa foi admissível, tamanha a necessidade. A segunda foi boa. A terceira muito boa. A quarta deliciosa. Arroz, feijão, bife acebolado, batata-frita, ovo e macarrão. Da fartura veio a preocupação: assim vai ficar gordo! Quarta indignação: por que a felicidade dura tão pouco?
Matriculou-se numa academia. Do outro lado da Ponte de Santa Clara. Morros e inclinações o esperavam na volta. Aparelhos novos, difícil de acostumar. Que nada, dois dias. Foi bom. Saindo dali, teria que voltar para seu refúgio. Foi então que encontrou o seu novo refúgio, um que realmente valesse a pena. Parou em frente ao Mondego. De noite, com todas as luzes da cidade a se espelharem em suas tão límpidas águas. Como pode ser tão bonito? Quantas luzes. Quantas casas. Quantas pessoas. Quanta vida. Quanta alegria. Parou e respirou fundo. Sentiu o cheiro. O mesmo que sentiu em Natal, quando estava diante do mar. Parou e ficou ali alguns minutos. Absorto. A lágrima da saudade o fez levantar, já era hora. Olhou para o morro tão íngreme que o esperava e riu. Já não botava tanto medo assim. Terceiro desafio: viver.

Coimbra, domingo, 09 de outubro de 2011, 16:20.



quarta-feira, 6 de julho de 2011

Um Poema Possível



Em teu nome me assomo.
E breve como a paixão dos que choram por nós,
Te bastarás apenas o gozo de merecer o solo
Que um dia pisaste com perdida alegria.
Esse corpo, essa forma e substância.
Tudo de mim herdarás: o fruto, o amor, o Nada.

sábado, 08 de janeiro de 2011.

domingo, 5 de junho de 2011

Das várias formas de amor


Ao melhor amigo, Wendel.

Chegou um ponto da caminhada que ele parou e se pôs a refletir. Em verdade, havia andado tanto, estava exausto, foi descansar. Algo de muito errado havia se dado depois de tanto andar. No meio do caminho perdeu o sentido, confundiu as direções, desnorteou-se. Estava perdido e precisava se encontrar. Chegar a si mesmo, eis o grande desafio. Pensou por um instante, quase uma eternidade, que nunca conseguiria tal achado. A estrada havia sido árdua e longa e, talvez por um egocentrismo, uma auto-suficiência prepotente, um isolamento inerente, colocou consigo que o que havia vivido seria único e não via um porquê de compartilhar. Mas, agora estava parado no entroncamento de várias estradas, no meio do nada, no centro de um turbilhão de encontros.
O mais despretensioso dos encontros, um milagre como o abrir dos olhos do recém-beija-flor (quase que uma guerra contra a mãe-natureza), simples como uma espontânea oração. Como dois seres, com uma história já tão carregada, já tão vivida, podem parar e se disporem a percorrer um só caminho? Como dois olhares, individualmente, singularmente, calejados pela vida, cada qual a seu jeito, cada um olhando um detalhe diferente que lhe chama atenção, podem confiar a tal ponto de ler os pensamentos nas pupilas desconfiadas?
Vindo do Norte, talvez a seu encontro, sem tamanha consciência, eis que os dois se depararam. Confronto. Encontro. Dois mundos diferentes se entrecruzando, para o espanto dos dois, quantas semelhanças. Coincidências? Mesmo ônibus, casas próximas, histórias de colégio. Não, o encontro não chegou nem perto de qualquer melodrama novelesco, à primeira vista. A proximidade se deu com o tempo, gradativamente ao longo da caminhada nos quilômetros restantes.
Escolha. Consciente ou não, os dois escolheram se apoiar um no outro na injusta obrigação de continuar vivendo, existindo. Viram na diferença a possibilidade de complementação. Os dois se completaram. O senso existencial, humano e sensível de um; a garra, força, o tato e a lealdade do outro.
Por uma peça da eventualidade, que alguns gostam de chamar de destino, os dois se tornaram colegas. Mas, eis que não ficam bem no papel de colegas. Não são colegas, são amigos. Lembro que, certa vez, assistindo um besta programa de entretenimento numa cansativa manhã em que me punha a malhar, a senhora vinha pregando. Todo dia vinha com uma “mensagem” diferente, daquelas que são feitas especialmente para um (falso) encontro intimista. Todos sofrem, meu caro. Sofria, também. As mensagens, contudo, nunca me acalentaram. O vazio postergava e continua, ainda. No referido dia, entretanto, dou a mão a palmatória: achei verdadeiramente interessante a reflexão proposta.
Diferenciava a mulher a amizade do, digamos, coleguismo. Lembrei, então, as primeiras semanas na faculdade. Recém-saído de um desumano Ensino Médio, o vazio parecia, àquela época, mais um buraco-negro. Nessas situações, o apego é quase instantâneo e a vontade de reconhecimento e encontro é artificialmente gigantesca. Ainda calouro, mergulhado (me afongando) em um mundo novo, cheio de perspectivas, expectativas, medos e desejos, via em minha, até então, turma um amontoado de amigos – eram, praticamente, os únicos. Via harmonia onde hoje só vejo discórdia. Mas, dizia a mulher que amigos eram aqueles que nós verdadeiramente escolhíamos, sabes por quê? Porque amigos são aqueles que se encontram, não passam, permanecem, entram em contato. Juntam diferentes histórias, gostos, sentimentos, se compatibilizam. São aqueles que se abrem para a troca. Lembro que dizia, quase que exatamente, assim: “amigos que se juntam pelas ideias em comum, visualizam um futuro, criam, juntos, um presente e trocam um passado”.
Ora, sei que o que a perua disse, qualquer um poderia dizer. Mas, não sei por que gostei tanto da reflexão (tão imprevista, por minha parte) naquele dia. Gostei ainda mais quando ela disse que (não com essas palavras, logicamente) colegas são meramente acidentes do destino. Um belo dia o pai de João decide matriculá-lo na escola X. Coincidentemente, por ter sido tão belo o dia, o pai de José também o matriculou no mesmo lugar. Eis que os dois se conheceram: tornaram-se colegas. Eventualidades, ou praticidades, do dia-a-dia. São colegas, daí a serem amigos vai uma distância considerável. Distância essa que, aqui, resumirei, com todos os erros que uma síntese compreende, em uma palavra: confiança.
Como adquirir confiança em uma pessoa? Primeiro erro: adquirir. Confiança não se adquire, se constrói na vivência. Eis, então, o ponto primordial: a vivência. Seguindo os velhos novos brocardos: vivemos em um mundo tão artificial, superficial, uma correria louca que nos deixa poucos minutos para um profundo conhecimento. Conhecer. Conhece-se uma pessoa nos fatos mais simples, os mais singelos comentários, os mais corriqueiros gestos. É sair da zona de conforto e entrar num confortável juntar-se. Divagando um pouco, lembro de certa vez ouvir algo que tanto me fez sentido: não nos apaixonamos por alguém por que tal pessoa é inteligente, culta, crítica, respeitosa, etc. Não gostamos de alguém por que ela tem uma grande preocupação sócio-ambiental. Gostamos de alguém, por que “bateu”, simplesmente assim. Nos encantamos pelo modo como a guria nos olha, pelo modo como passa calmamente a mão no cabelo, ou pelo visual com que vai todo dia à faculdade.
Mas, não, não creio que seja unicamente assim. Tentando ampliar um pouco esse pensamento que uma vez ouvi, creio que o “simplesmente assim” serve apenas como um início, uma abertura. Encanto-me com a guria de olhos anestesiantes, mas, e depois? Há várias pessoas as quais olho e consigo, egocentricamente falar: “nunca serei amigo dela”. Não há entrada, não há abertura. É muito fácil, também, nos decepcionarmos com as pessoas (as caixas-pretas que estão em nossa volta), o velho joguete de expectativas e frustrações. Por isso, creio que acima de qualquer contato inicial fabulosamente fantástico e irresistível, mais vale a vivência cotidiana, o calejar em conjunto dos dedos de diferentes mãos. Muito fácil, afinal, se encantar pela guria mais linda, com olhos inebriantes de ressaca, e acreditar estar ali a felicidade, nos momentos soul. Difícil é conviver intensamente, nos momentos de morte de familiares, perda de oportunidades, discussões entre amigos, debates inusitados, frustrações constantes. É ai a prova-de-fogo: qual é a sua? A que veio para minha vida? Vai passar ou deixar marcas? Ficar marcado, cerrado no difícil caminhar chamado “amizade”? Quando soube a resposta disso, meu amigo, tive certeza: confio.
Lembra-se dela? Ora, meu amigo, digo sem medo que tu é a pessoa que mais me conhece, sabe melhor que eu quando estou triste. O quanto deve ter se cansado de sempre me ouvir falar dela, dela, dela. Eu sei, muitas vezes sou bastante egocêntrico. Mas, não tens ideia do quanto, me ouvindo, ajudou-me a apaziguar, o quanto, aconselhando, ajudou-me a agir (ou não-agir).
Hoje, com a alma mais acalentada, tenho certeza: ela realmente gostou de mim, gostou muito, talvez o mesmo tanto ou até mais. Só de ter se aberto a mim, ignorado, por alguns dias que seja, a presença do namorado/príncipe encantado, sei o quanto me amou. Ela gostou de mim. Mas entre Ana e o Mar havia ele. Ela pode ter se apaixonado pelo jeito como ele estrala os dedos, sei lá. Mas, com certeza o amou pela convivência diária, pelos erros cotidianos e as aceitações mútuas. Com ele, ela tinha história. Havia eles, não havia eu. Uma lição ficou: “Não cobiçarás a mulher do próximo”, ou melhor, “não interferirás nas histórias alheias”. Ela interferiu na minha. Veio e deixou marcas. Aquela desgra(...) – você sabe o que queria dizer, né, ah se sabe...
Mas, por que estou eu a divagar sobre elas, as mulheres? Num verdadeiro paralelismo entre o amor carnal e o amor universal, que hoje creio existir, acho que os dois seguem a mesma dinâmica: em ambos há doação, há abertura, há tentativa de se encontrar, há medo, angústias, há momentos compartilhados, há um caminho a ser trilhado, há uma carga emotiva incrível, há um confiar.
Vou lhe contar um segredo, meu amigo: lembra-se do dia 31 de dezembro de 2010, o réveillon passado? Lembra-se quando lhe telefonei e acabamos conversando um pouco? Não sei se notou, minha voz estava triste. Havia chorado bastante antes, e chorei ainda mais depois que falei contigo. E sabes o quanto não sou de chorar, em verdade, não gosto de chorar. Naquele dia, entretanto, não agüentei. Fui tomar banho e me veio uma tristeza, um peso tão grande. Nunca havia passado por uma imensidão tão triste. As águas caindo e minhas lágrimas a elas se juntaram.
Naquele momento não pensei em Giselle, Dyeire ou Mariana alguma. Pensei em ti, meu amigo. Pensei o quanto tudo à minha volta estava mudando, eu estava amadurecendo, as coisas acontecendo, os laços fortificando, e você, você sempre lá, do meu lado. Foi então que me veio um medo, confesso, um medo gigantesco de lhe perder. E então me dei conta do quanto lhe amo. Foda-se o que podem pensar, mas a partir deste dia percebi que é possível o amor entre dois homens, não um amor carnal, não um amor sensual, mas um amor de amigo; percebi ser possível amar, com toda a singeleza e força que a palavra “amor” pode significar, um amigo.
Enfim, meu bom amigo, neste dia pensei em lhe dizer muitas coisas, especificar melhor os momentos que juntos passamos (e que não foram poucos), mas, deixo isso para uma outra oportunidade, que com certeza virá. Lembro agora de uma música do bom Russo: “Me disseram que você / Estava chorando / E foi então que eu percebi / Como lhe quero tanto”. Amigo, lhe quero muito, lhe quero sempre ao meu lado, me ajudando, deixando que eu lhe ajude quando necessário. Mas, sabes o pé-atrás que tenho com o Renato, né? Por isso a música que quero lhe deixar hoje é, para mim, especial, e me faz lembrar de ti, do caminhar que até agora fizemos. Toni e a sua Cidade dizem: “A vida ensina / E o tempo traz o tom / Pra nascer uma canção / Com a fé do dia a dia / Encontro a solução”. E que a parte romântica do final da música lhe ajude a recompor as forças e ficar aberto para um novo amor, meu amigo.
Nunca se esqueça do que lhe disse: você é um cara único, de um coração imenso e com certeza irá encontrar alguém que lhe ame muito. No mais, podes sempre se amparar nesse ombro amigo, deste amigo que lhe ama muito. Colega de sala, companheiro de CAXIM, camarada de Câmara. Amigo de vida.
Chegou um ponto da caminhada que ele parou e se pôs a refletir. Eis que seu amigo chegou e lhe dou um cutucão no rosto e disse: “por que parar, meu amigo? Vamos, temos de continuar, ainda é longa a estrada”.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Momento Difícil


   Falar em momento errado é partir primeiro da constatação da existência daquilo que possivelmente vem a ser um momento certo. Mas, afinal, o que é momento certo? A etimologia garante: certo é tudo aquilo que não seja dúbio, ou seja, certo algo próximo de seguro. Discutir tais divagações, enquanto um estudante de Direito, é algo no mínimo inseguro. Isto mesmo: inseguro discutir a segurança, talvez por esta ser termo tão caro às nossas idiossincrasias jurídicas e passar quase que despercebido a sua intersecção em nossa vida cotidiana, corriqueira. Mas, estamos progredindo: é certo que certo é seguro, claro, preciso, irmão gêmeo da verdade. Ora, tudo o que é verdadeiro, por certo, é certo.


   Tudo bem, vamos deixar um pouco de lado as secreções linguísticas, até porque esse texto não e nem pretende ser um trava-línguas. Concentremo-nos no importante: o momento! É quase chocante realizar um paralelismo entre as etimologias de “cérto” e “moménto”. Ora, ao passo que o primeiro denota uma gigantesca atmosfera de certeza e precisão, o segundo é derivado de instante, movimento, impulso, “um breve movimento de tempo ou duração de um simples movimento”. Um instante, algo que se desmancha no ar, tão leve, tão rápido, tão instável, tão impreciso. Como colocar, então, no mesmo balaio duas coisas tão discrepantes? Poderiam alegar os dialéticos tratar-se de exercício não muito difícil, mas aqui meu lugar de fala não é dialético, nem tampouco jurídico. Confesso que tais divagações poderiam ter surgido de uma longa discussão com algum professor de Direito Penal, por exemplo, na fútil tentativa de filosofar sobre um momento impreciso no qual algum indivíduo acaba por disparar balas e mais balas sobre o crânio alheio. Talvez mais digno se tornaria este texto se assim fosse sua gênese. Mas, não, vomito tais palavras por motivos estritamente pessoais, na vão lembrança de que por dentro de um medíocre estudante das ciências jurídicas reside alguém que ama, pensa, sofre, existe.



   Voltando no momento errado fica fácil apontá-lo como sinônimo de momento incerto, tal a proximidade axiológica entre errado e incerto, ora aquilo que não é certo, por suposto, errado. Eis aqui a grande magia das secreções linguísticas: incerto guarda consigo outra significação, além da natural aproximação com o errado. Incerto carrega também a ideia de insegurança, instabilidade, aquilo que no exato momento não pode ser mensurável, visualizável, arriscado. Não seguro, confuso, titubeante. E como sei o valor, ou melhor, a importância, da boa e velha segurança jurídica. Deixei de comprar meu ingresso do Rock in Rio e agora estou vagando a procura de algum. Não sei se animaria pegar um avião sem a certeza do ingresso na mão. A boa e velha segurança jurídica. Como o coração palpita momentos antes de tentar as vias de fato com a guria que lhe cerra os olhos. O que ela vai responder? Ela também está sentindo o mesmo ou é só nóia da sua cabeça? Ah se pudesse ler mentes, com certeza seria o rapaz mais corajoso e ousado deste mundo, nadaria de braçadas no universo da precisão. É chegar e... Talvez perderia o prazer, por que não? Freud já dizia: em toda dor há um misto fenomenal de prazer, a pulsão de vida acompanha quase que tresloucadamente a pulsão de morte. Talvez meu coração não se largaria a pulsar. Talvez. Trocaria um talvez por outro: talvez ela esteja sentindo o mesmo por você, babaca. Talvez.



   Cheguemos, então, em um ponto crucial: notem como seria cômodo nadar de braçadas na leitura dos mais inescrupulosos pensamentos sombrios das gurias por quem me interessasse. Isso, eis a palavra-chave, muito mais do que certo, errado, momento ou qualquer outra. Eis a palavra: cômodo. Voltando no nerdístico raciocínio do estudante-de-bem das letras jurídicas: ora, por que Direito? Já no terceiro ano, não vou titubear, dou a cara a tapa: para nos proporcionar uma (falsa) ideia de comodismo, de segurança. É muito mais cômodo viver numa sociedade em que se sabe que ninguém (aham, tá bom, senta lá...) irá bater em seu carro sábado a noite saindo do Taurinos. É muito mais cômodo chegar em uma guria em que se percebe a certeza do sim e do “viveram felizes para sempre” - ao menos o final da noite será, com toda a certeza, muito mais agradável, hehe.
   Momento difícil é momento errado? Não. Momento difícil é momento não-cômodo. É um momento de incertezas, inseguranças, imprecisões. É quando nos deparamos em frente de desafios, questões que nos são dadas para nos darmos conta que nem sempre é tão fácil respondê-las. O “dois mais dois” já ficou para trás e agora nos vemos diante de questões muito mais complexas, afinal, existir é complexo. Momento difícil é quando não sabemos o que esperar do outro, é quando cada dia é um dia diferente, com respostas diferentes, comportamentos diferentes. Difícil é tentar as vias de fato com a guria que prendeu nosso olhar e não sabemos se o nosso olhar também prendeu aquele lindo par de olhos. Difícil é viajar para o Rio sem um ingresso na mão. Difícil é fazer uma prova do Falconi sem fazer a mínima ideia de como será cobrado o extenso conteúdo. Difícil é brigar com um amigo, engolir o orgulho a seco e pedi-lo desculpas.
   Difícil é decidir não nadar de braçadas no mar da segurança jurídica. Momento difícil é o momento de se esquecer tudo o que foi acima dito e se arriscar. Dificilmente, existir.