segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Mosaico do Insólito

MAGNÓLIA

título original: (Magnolia)
lançamento: 1999 (EUA)
direção: Paul Thomas Anderson.
atores: Philip Seymor Hoffman, Julianne Moore, Tom Cruise.
duração: 188 min
gênero: Drama
O filme de Paul Thomas Anderson é, sem dúvida, uma das maiores preciosidades do cinema da década de 90. Nos apresenta um mosaico das relações humanas por meio do acompanhamento da história de vida de diversos personagens, que por diversas vezes se cruzam e rendem cenas emocionantes.

No melhor estilo "Short Cuts", "Amores Brutos" e "Crash", por cerca de três horas que, realmente, parecem passar despercebidas, tamanha coesão aplicada ao roteiro, o filme empolga do começo ao fim e, acima de tudo, nos emociona ao apresentar histórias de "gente comum" em situações insólitas, mas possíveis, que nos colocam no liame do limite. "O que fazer? Como aguentar tamanha dor?" talvez seja o questionamento mais latente nas histórias mostradas e que chega ao clímax na fantástica cena em que os personagens embalam o som de "Wise Up". Impossível não se emocionar.

Norteados pela experiência num programa de TV, os personagens destacados nos trazem fortes questionamentos. Como o personagem de Tom Cruise (perfeito, como [quase]sempre, em atuação injustamente preterida pela Academia), que cedo teve de lidar com o abandono do pai e a morte da mãe e agora, por ironia (será?), ganha a vida ensinando o machismo-alfa dominador para homens de plantão. Ou o personagem de William H. Macy, que funciona como um anúncio do que provavelmente ocorreria com o garotinho que compete atualmente no programa em foco. Juliannne Moore também está fantástica e consegue transmitir de forma intensa e instigante o peso da dor pelos atos passados e da corrosão que implica o amor inalcansável e que está se desfazendo.

Cenas antológicas, e que trazem consigo um puta questionamento (de tudo). Talvez isso seja o que mais fica ao espectador de Magnólia. Destaque para algumas: a cena em que Julianne dá um "esporro" no rapaz da farmácia; a cena em que o garotinho mija nas calças em pleno programa; a cena em que o personagem de William H. Macy diz "amar a todos", no bar; a cena final emblemática entre o casal Jim e Claudia; a já referida cena em que todos cantam "Wise Up" e, como não poderia deixar de ser, a fantástica cena-insólita da "tempestade de sapos", que consegue superar (e muito) a também insólita cena do terremoto de "Short Cuts".

Enfim, cenas que compõem esse que é, como já dito, um filme fantástico e que deve figurar, sem dúvido, no hall de qualquer admirador do bom cinema crítico.

Vale a pena "gastar" [ganhar] 3 horas!

sábado, 29 de janeiro de 2011

Os cinquenta anos da UFG: a importância dos estudantes neste importante processo

Em 2010 a Universidade Federal de Goiás completa seus cinqüenta anos e acreditamos que essa grandiosa história foi construída, gradativamente, ao longo desse tempo por forças que atuaram em conjunto em prol da consecução de um bem maior, o desenvolvimento de um centro de saber gratuito e de qualidade no coração do Brasil.
O primeiro Reitor da UFG, Dr. Colemar Natal e Silva, hoje dá nome ao Campus que abriga a Faculdade a qual foi diretor. Sua casa, a Faculdade de Direito, é, pois, mais antiga que a UFG: foi fundada em 1898 na Cidade de Goiás e se mostrou fundamental para a realização da UFG.
Mais antigo do que a nossa querida universidade é, também, o glorioso Centro Acadêmico XI de Maio, o CAXIM, fundado em 1933, também na antiga Vila Boa. O CAXIM também se mostrou, em meados do término da década de 50, decisivo nos “bastidores” da fundação da UFG. Assim sendo, devemos parabenizar a força estudantil que também tanto colaborou para a fundação da, hoje quase cinqüentenária, UFG. O movimento discente, bem como o corpo docente, teve importância fundamental para que no dia 14 de dezembro de 1960 a UFG fosse criada.
No final da década de 1950, o CAXIM participou do ato público na Praça Cívica de Goiânia, no qual o presidente Juscelino Kubistchek assina a lei de fundação da UFG e da Universidade Federal de Santa Maria no Rio Grande do Sul.
Importantes documentos históricos que relatam esse período se encontram, atualmente, expostos na Secretaria Administrativa do CAXIM, no piso superior da FD, Pça. Universitária. Nestes ricos acervos históricos, que apresenta, inclusive, importantes ofícios com trocas de correspondências entre o Presidente do CAXIM à época e o Dr. Colemar, podemos encontrar uma flâmula comemorativa do momento, com os dizeres “O CAXIM saúda a UFG”.
Acreditamos que um fato com tamanha importância, como o cinqüentenário de nossa querida universidade, não pode deixar de exaltar os esforços feitos por importantes movimentos, segmentos e personalidades que contribuíram de forma decisiva para a hoje já tão estruturada (e em constante movimento) Universidade Federal de Goiás. Assim sendo, devemos exaltar os estudantes e as lideranças estudantis do grande Centro Acadêmico XI de Maio. O apoio conferido foi, como já exposto, fundamental para hoje estarmos comemorando tal data.
Ao longo de mais de 70 anos, nosso Centro Acadêmico vem lutando de maneira incisiva e aguerrida, tornando-se referência por suas mobilizações e articulações, principalmente através dos jornais “O Acadêmico” e “O XI de Maio”, que se tornaram os principais instrumentos combativos na proliferação de idéias e opiniões. Participou de importantes momentos históricos, como a realização, em parceria com o Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), da “Semana Nacional Mudancista”, que tinha por finalidade pressionar a opinião pública em prol da construção da nova capital do país no Planalto Central. Desse episódio restaram algumas fotos e documentos em nosso Arquivo Histórico, tendo rendido para ambos os C.A.s envolvidos uma homenagem por parte do Presidente JK, que imortalizou seus nomes numa placa fincada na atual capital federal, congratulando-os pela atuação em prol da criação de Brasília.
Os cinqüenta anos da UFG guardam consigo muito mais do que pode parecer: guardam a luta de várias pessoas que durante esse tempo se esforçaram bastante para que a UFG se tornasse a força que hoje, no mandato de Edward Madureira Brasil, se mostra ser. Os cinqüenta anos da UFG trás consigo a força do estudante goiano e a importância histórica e combativa do glorioso CAXIM.
No dizer de Benedito Ferreira Marques, ex-Vice-Reitor da UFG e ex-Diretor da FD, e grande colaborador do CAXIM, este não está sempre à liça!

Texto publicado no site: http://portais.ufg.br/projetos/50anos/


Tic-tac



sempre achei que tinha tempo.
hoje é o tempo quem me tem
se ele corre, ofego com ele
e ficamos os dois parados na chuva , olhando as pessoas.
nos debruçamos em sincronia nas janelas
vasculhando o dentro e o fora
com a mesma irreverente sofreguidão.
somos parceiros nos assaltos às horas,
adversários  em jogos de paintball
(o tempo insiste em usar diferentes cores,
o que me faz nunca saber
quem é na verdade o inimigo).
tudo que quero é que ele
nunca ande mais depressa do que posso.
que me acompanhe o ritmo de passos
elásticos agora (ainda),
talvez pequenos e hesitantes logo um dia.
o tempo é também meu melhor amante.
aquele que não desistirá de mim. 


Perséfone.




quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Como Uma Onda No Mar III


Ao mestre com carinho, para Heloísa Capel.

 [Ele estava na xerox do CA de História quando a viu e gritou:]
– Heloísaaa!
– Príncipe Heitor! Quanto tempo hein!...
– Então, nossa, faz muito tempo que não nos vemos. Mas, você continua a mesma, minha professorinha querida. Continua linda e adorável. Que estranho, hein. Só pode ser o destino. KKK’ Olha eu, que nem acredito nessas nóias de horóscopo, falando em destino, hein... Mas, fala sério, te mandei ontem um email, e hoje, depois de meses, te encontro de novo. Você recebeu o email?
- Recebi sim, e já respondi! Não viu a resposta? Mandei ontem de madrugada. Topo tudo, como dizia o Wendel, kkk.
- Que massa! Eai, o que anda fazendo de bom da vida? rsrs'
– Uai, transferi-me para o Campus da Cidade de Goiás, mas de vez em quando ainda ministro aulas especiais para o programa do Mestrado e do Doutorado aqui em Goiânia. Hoje estou aqui para uma conferência. E você, o que anda fazendo por aqui?
– Estou no intervalo da aula, um NL que estou fazendo aqui no Campus. Não sei o que me deu, acho que uma louca mesmo, só eu para, no quinto ano, vir aqui pro Samambaia.
- Qual disciplina está fazendo?
- Ah, professora. Ela se chama “Tópicos Especiais de Literatura Contemporânea II – Clarice Lispector”. É fantástica. Lá na Letras. Hoje é a última aula, despedida [você sabe, sempre fui péssimo com despedidas...]. A professora é muito legal, mas, lógico, não chega nem aos seus pés, hehehe.
- Que legal! Mas, isso é uma tentativa de fugir do Direito? Não me diga que está desanimado, hein...
- Não, professora. Nos últimos três anos estou aprendendo a gostar muito do Direito, a amar mesmo. Acho que não poderia ter feito uma escolha melhor, realmente é a minha praia. Sabe, comecei a vê-lo de uma forma crítica e ver que é possível conseguir coisas fantásticas através do Direito. E, também, o curso deu uma melhoradinha, aprendi a amar algumas matérias, como Direito Administrativo (minha preferida) e Direito Constitucional.
– Que bom! A Maria Clara também está começando a gostar, já até está estudando bem mais. Estou tão contente! Mas, me diga, o que mais está estudando ultimamente?
– Estou lendo um pouquinho de Marx (tem que ser, né? rsrs’), Freud, Habermas, Adorno, Luhmann e Boaventura de Sousa Santos. Um pouquinho de Machado, Caio Fernando Abreu, do Pessoa (ahh, o Pessoa!) e muuuita Clarice! Ah, te contar: meses atrás estava relendo os textos e slides de História Cultural da Arte. Nossa, lembrei do Beckett, do Burckhardt, do Warburg. Puts, saudade daquele tempo viu... Falando nisso encontrei o Felipe e a Ana Paula esses dias. Encontrei eles de relance lá na FD, estavam pegando uma matéria lá. Foi tão bom! Passamos a tarde inteira conversando! Eles formam só ano que vem, sabe como é, Medicina é um ano a mais. Estão naquela expectativa.
- Nossa, que bom! Saudades demais daqueles garotos! Saudade dos meninos também, do Wendel (um grande poeta, um grande pintor, um grande amigo...), do Vinícius (um gênio indomável, garoto incrivelmente engraçado e divertido, sensacional!), da Anna (ahh, minha Anninha, a garota mais sensível que já conheci, sabia?)... Como eles estão?
- Eles estão ótimos! Wendel forma comigo, em março do ano que vem, também! Anna e Vinícius estão no quarto ano, estão adorando o curso! A Anna já fala em ser professora de Direito Penal! Eles estarão na minha defesa de monografia, também! Lá será a oportunidade de nos reencontrarmos, hein!
- É mesmo, que fantástico! Que dia será mesmo? Aliás, achei o tema incrível, interessante e inédito. Um desafio, né?
- Nem me fale, Heloísa. Fiquei com medo. Ele ficou muito extenso! Puts. “A formação do sujeito jurídico contemporâneo: entre a igualdade econômica do mercado e a desigualdade material do sistema prisional – Interfaces entre Direito Crítico, Psicanálise e Mitologia”. Queria abarcar tanta coisa, fiquei com muito medo de virar uma salada e não dizer nada. Mas, lancei o trabalho num concurso de monografias e acabei ganhando! Agora eles querem publicá-la como livro. Mas penso que vou encurtar um pouquinho esse título, está enorme. Ahh, a defesa da monografia será na próxima quinta-feira, às 20 horas, aqui mesmo na FD.
- Nossa, Heitor, ganhou prêmio e vai virar escritor! Que lindo! Que orgulho estou sentindo de você! Eu lhe disse, se lembra? Você ainda iria brilhar muito! Passar por muitos desafios, pessoas que não vão gostar de você, mas, com essa determinação sua, que é única, você ia conseguir tudo! Estou tão contente! E pode saber: já marquei na minha agenda a sua defesa, hein! Assim que li o email ontem, já fui anotando...
- É, vai ser muito bom nos reunirmos de novo. Nossa, hoje vejo o quanto foi importante os momentos que juntos vivemos, que vão ficar sempre marcados, tenho certeza, em todos nós. E você ainda está me devendo uma saída para um barzinho, hein! Não pense que eu esqueci daquela vez que teve o teatro, o Company, hein. Depois da defesa, vamos todos para um barzinho!
– Ah, claro, hehe. Combinadíssimo! E me visitem depois, tenho uma casa lá no Bacalhau, perto do rio. É só me mandar um e-mail. Continuo on-line. rsrs'
– Tá certo, professora, vou articular com o pessoal para passarmos a virada do Ano Novo lá, pode ser? O que acha? Tudo regado a uma boa filosofia, filmes, músicas e... vinho!
- Nossa, que idéia ótima, Heitor! Lidera lá o pessoal, por mim tá fechadíssimo! Já vou organizando a casa, rsrs, pra não passar vergonha...
- Heloísa, tenho que ir agora. Minha aula já vai começar. Foi muuuito bom te encontrar hoje, hein! Foi maravilhoso! Vamos mantendo o contato! Não some das nossas vidas, hein?! Muitas saudades da senhora!!!
– Saudades também, meu querido! Parabéns pelo prêmio, pelo livro, pela defesa, e por ser essa pessoa doce e meiga!
- Até quinta, professorinha!
- Até lá, meu príncipe!
[E ele sumiu no vão do corredor. Heitor tirou nota máxima na defesa. Depois, finalmente, foram para o tão esperado barzinho. A virada de ano, na cidade de Goiás, foi incrível. Todos reunidos, para ver o pôr-do-sol, a “hora azul”. E, tomando um delicioso vinho até badalar a meia-noite. E eles continuaram se encontrando, marcando encontros em festivais de cinema, literatura, artes, se encontrando nas diferentes casas, assistindo filmes, indo ao cinema, e trocando e-mails por muitos e muitos anos...]


domingo, 23 de janeiro de 2011

2, 1000 e 10

Assim foi 2010:
espantado, corrido
o tempo passando dolorido
no peito de quem amou.
Pouco se amou em 2010 -
mas ninguém reclamou
do pão, da carne
da prestação do imóvel
impróprio para habitação
e aumentou a drummoniana fila do feijão
enquanto vinha nova informação
intumescendo 2010
ano que pachorrentamente
deglutia 2009
sua crise, sua gripe
sua morte da estrela
e a unidade numérica
pobre um
se sentia magra
exígua virgular
interrompendo a oratória penetrante
do olhar
que formavam os zeros inquietantes
na conta bancária
milionária
da high-perdulária em 2009.

2010 rimou com desilusão
poço sem fundo
gosto de derrota
na copa do mundo.
E seguindo o fluxo
mercantil
disseram avante, Brasil
e 2010 atravessou
com cheiro de casa nova
dos programas de habitação
moradia, meu irmão
temos teto
temos chão
e o Brasil é maravilhoso porque não tem terremoto.

Em 2010 saiu do ar
poluído, acrise ecológica
e saiu para dar lugar
à violência patológica
ao assassinato da mulher
do jogador
do clube de futebol
e dos novos ricos.
A publicidade
sem muito esforço
mostrou-nos novamente belo corpo -
o corpo ainda não foi encontrado.
A imprensa, mais em 2010
em seu poder refratário,
usando de imbatível retórica
meteu-se a judiciário
e não bastasse o criminal
palpitou na zona eleitoral
com seu ar sempre jurídico
grave
circunspecto comedido
com argumento de autoridade
(ou autoritário
sensacionalista panfletário).
 E 2010 já respirava cansado
quando soaram
as trombetas da cidadania
convocando o jogo democrático
e na feira da democracia
houve a surpresa da verdura
embora pareça sem cura
(ao menos para as donas de casa que fizeram o Normal)
esse amontoado de horrores
que são os fornecedores:
cultivam a mesma espécie
e disfarçam com facetas várias
o que foi plantado nas mesmas terras
latifundiárias -
mas não tem problema 
se faltou arroz no Natal
em Copacabana
houve fogos, foi sensacional
que beleza ficou o céu
acima do Palace Hotel
decretando: continuará em janeiro
sendo este o Rio verdadeiro.
E façamos jus ao carnaval
que marcará 2011,
seu ponto inicial
e apesar das unidades com fome
no fim do numeral
tenhamos esperanças
um pé atrás
e nas mãos desconfianças.
E para elas há motivos, não há?
Ora, minha gente,
vamos combinar
2010 foi deprimente
de uma tristeza crepuscular.
Vinícius Sado Rodrigues
 

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Ponto Final



Chegou à frente do computador. Abriu o chat. Para ninguém lhe impugnar crueldade ou insensibilidade, decidiu dar uma última chance para o amor: jurou pra si mesmo que caso ela puxasse naquele momento, qualquer assunto, ele iria esquecer toda a tensão e estaria disposto a começar tudo do zero, recomeçar a história. Qualquer assunto, a hiperinflação argentina, a queda do muro da Tanzânia, a troca de sexo de amigo em comum, algum episódio de Caverna do Dragão, enfim, qualquer coisa. Bastava um “oi”, um sinal de vida, e tudo estaria resolvido. Ela voltaria à sua vida, entraria na porta da frente, de gala. Não disse nada. Ficou calada, muda. Saiu pela porta dos fundos que, agora ele fazia questão de trancar. Ela ficou em silêncio, como fez nos últimos dois meses em que estavam sem se falar. A janelinha do chat subiu. Ela estava on. Quinze minutos, ele iria esperar quinze minutos. Trinta se passaram e nada. Decidiu: iria colocar um ponto final, em tudo. Mandou um email.
Ela abriu o chat. Naquele dia pensara em sua vida e tinha tomado uma decisão: iria esquecê-lo de uma vez por todas e se entregar à nova paixão. Entrou, então, no chat para falar com essa tal nova paixão, não tão nova assim. Fazia cerca de dois meses que não conversavam. Clicou na janela de bate-papo. Não deu nada. O programa estava com defeito. Talvez seja vírus. No dia seguinte viu que recebera um email dele, acabando com tudo. Terminando tudo que nem existia.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Ayer

O homem estático mira a Pietà

Ayer

O homem sonha com o poema que vai escrever

Ayer

O homem pensa que quer convidá-la para dançar

Ayer

O homem tem vontade de trabalhar

Ayer

O homem põe seus óculos e projeta

Ayer
O homem cultiva orquídeas em casa

Ayer

Fotografa o céu

Fumando se distrai, a vida lhe responde pronta e submissa

Ayer ayer ayer

O homem sorri, não pensa na morte

Mas isso foi ontem.

Anna Maria Nunes Machado
 

Brilho Eterno de uma Mente Amaldiçoada



Agora entendo: sofro de um mal! Uma maldição, uma verdadeira praga que alguém jogou em mim ou em algum dos meus antepassados, em alguma encruzilhada de minha gigantesca árvore genealógica. Sofro de um mal: por que me apaixono por todas as meninas que me olham e me encaram nos olhos? Por que me apaixono por todas as meninas que são [um pouco que seja] simpáticas comigo? Por que quando estou em um ônibus e vejo uma guria e a acho bonita, ou melhor, “compatível com minhas preferências”, e se esta olha o rapaz que está atrás de mim e, num desvio qualquer de percepção, penso que está me encarando, logo me vejo apaixonado por aquele olhar [que nem pra mim era...]? Paixão, paixão mesmo. Por que me perco em todas as mulheres que em mim despertam o mistério, que em mim despertam algo a se descobrir? Quero descobrir. Mas descobrir tanta coisa em tantas mulheres? Vou acabar me afogando em tanta água e acabarei não descobrindo nada, não desvelando o mistério de nenhuma de minhas amadas amantes. Sofro de um mal: por que todas as mulheres com as quais me envolvo e, simplesmente, “não dá certo”, se afastam de mim, deixamos de ser amigos e o clima se fecha? Sabedoria. Sim, uma maldição.
Na segunda me apaixonei de novo. Ontem já não era aquela paixão com “P” maiúsculo. Hoje talvez encontre outra paixão. Todo dia recomeço uma nova paixão. Todo dia a mesma solidão.

Maybe

 
 
Se o meu pai tivesse nascido em uma megalópole, com certeza não teria esses incertos traços sertanejos. Se o meu pai tivesse nascido na São Paulo dos anos 80, certamente cresceria ouvindo o bom rock brasileiro na veia. Se o meu pai tivesse nascido na Paris do início do século passado, hoje seria um bon vivant admirador da clássica música clássica. Se o meu pai tivesse nascido na Liverpool dos anos 60, talvez até amigo de John poderia ter sido. Se o meu pai tivesse nascido numa rica família com berço de ouro, é provável que crescesse ouvindo Chopin e Vivaldi. O meu pai nasceu na biboca da biboca. Se o meu pai lá não tivesse nascido, talvez eu não seria eu, Alice não seria Alice, Paul não seria Paul, Godot não seria Godot, esse texto não seria assim, talvez Lispector não seria Clarice.
 
 

domingo, 9 de janeiro de 2011

A Fraternidade é Vermelho Fogo

Levantou cedo e tomou banho e café. Ela o ajudou. Ela sempre o ajudava, talvez por remorso ou compaixão. Talvez por amor. Mas naquele dia não poderia ir com ele até o serviço. Ela, geralmente, o acompanhava no ônibus e o deixava no serviço, prestativa que era. De lá atravessava dois quarteirões e punha-se a trabalhar.
Aquele dia ele foi sozinho até o ponto-de-ônibus. Morar no “nem” lhe impunha algumas dificuldades a mais, um plus na invalidez. Buracos, britas, descidas, nem vestígio de rampa. Não que tenha sido um esforço colossal, mas, com certeza, um pouco cansativo. Parando duas vezes no meio do caminho, terminou a via sacra e, enfim, chegara ao match point.
A tarde estava ensolarada. Naquele “buraco” os pontos não tinham proteção e nem bancos. Apenas uma placa, também no meio do nada, sinalizava o abatedouro. 5 minutos. Um ônibus passou. Não era o dele. 10 minutos. Outros dois ônibus passaram. O seu ônibus estava demorando. 30 minutos. Há meia hora estava com um sol de rachar em seu rosto.
35 minutos. Uma moça, jovem, bonita, chega ao ponto. Puxa assunto, pergunta a respeito do ônibus. Esperavam o mesmo. Ele disse que, provavelmente, aconteceu algo, pois já estava lá a mais de trinta minutos. Continuaram conversando, guiando o papo pela inconformidade com o serviço de transporte coletivo, o desrrespeito dos usuários e a falta de fraternidade entre as pessoas. Ela disse que já estava atrasada e que não poderia faltar a um importante compromisso. E o ônibus não chegava.
O ônibus, enfim, se mostrou no horizonte. A moça entrou. O cadeirante pediu ao motorista que lhe ajudasse a subir. O motorista fechou a porta e seguiu viagem. A moça pediu a ele que deixasse o cadeirante entrar. O sujeito lhe disse que o ônibus estava com a porta principal emperrada, por isso já havia se atrasado e estava com seu horário comprometido. A moça seguiu viagem.
O cadeirante pôs-se a esperar, de novo. Algumas gotas começaram a cair. Logo uma verdadeira tempestade já se formava. Vovó já dizia: tarde muito quente é sinal de chuva em seguida.


sábado, 8 de janeiro de 2011

O que veio depois da criação?

O OITAVO DIA

título original: Le Huitième Jour
lançamento: 1996 (Bélgica, França, Inglaterra)
direção: Jaco van Dormael
elenco:
Daniel Auteuil (Harry)
Pascal Duquenne (Georges)
Miou-Miou (Julie)
Isabelle Sadoyan (Mãe de George)
Michele Maes (Nathalie)
Fabienne Loriaux (Fabienne)
Hélène Roussel (Mãe de Julie)
duração: 118 min
gênero: Drama



O drama francês “O Oitavo Dia” se apresenta como uma crônica do dia-a-dia que vive o sujeito da contemporaneidade, do indivíduo que se vê mergulhado em um mundo de alta versatilidade, conexões e possibilidades, mas que, ao mesmo tempo, media sua vida por uma gama de responsabilidades e compromissos que se acumulam em seu cotidiano de tempo, rotina e relógio.
O filme centra seu roteiro em dois personagens principais que, a primeira vista, dificilmente poderiam manter qualquer tipo de diálogo: Georges é um garoto interiorano simples, com uma baita imaginação e que nutre, por meio do universo musical, a saudade imensa que possui de sua mãe, morta anos antes; e Harry é um empresário da cidade grande, bem sucedido profissionalmente e que está vivendo um grande fracasso em sua vida pessoal, tendo sido abandonado por sua esposa e, após sucessivos esquecimentos sob a desculpa de compromissos no trabalho, ganha o desprezo de suas filhas pequenas. A grande sacada do filme se encontra aí: nas diferenças que é possível verificar entre a vida de Harry e de Georges, o comportamento de ambos perante as contingências dadas e a forma como os dois se unem numa relação ingênua, pura e bela.
Georges possui problemas que a priori indicariam uma vida triste e amargurada, mas o que se vê é um rapaz feliz e que encontra tal felicidade nas coisas mais simples da vida: no apalpar a grama, no tocar uma árvore, no sentir a água do mar e a brisa do vento. Dono de uma sensibilidade gigantesca, Georges colore o seu mundo e encontra sentido para continuar na difícil travessia, e, como um anti-herói de Samuel Beckett, se depara com diversos momentos em que parece se abater. Destaque para aqueles momentos em que suas diferenças parecem representar uma repulsa a sua imagem e uma aparente impossibilidade de felicidade, como nas cenas em que o rapaz se encanta por algumas mulheres ditas “normais” e estas demonstram uma repulsão muito grande ao se dar conta de com quem estão lindando.  A simplicidade de Georges desconstrói, abala as estruturas e as armaduras das pessoas, o seu olhar ingênuo encanta, e sua doçura desperta a amizade de Harry.
Harry é o típico atarefado, sujeito que vive para o trabalho, o bem-sucedido profissionalmente, enquadrando aqui qualquer tipo, desde o Juiz Federal até o engenheiro de uma multi-nacional. Harry é a expressão de um tempo: de um período que dissolveu a subjetividade e a autenticidade do sujeito em prol de números e resultados práticos e o mais rápido possível. Harry é o indivíduo da produtividade, da educação bancária tão criticada por Paulo Freire. É um importante chefe de departamento de um banco, o Future Bank (nome bastante sugestivo), e ganha sua vida proferindo típicas palestras de auto-ajuda, sem se dar conta de que quem realmente está precisando de ajuda é o próprio. Vende um produto, uma idéia, a do vendedor bem-sucedido, e acaba por incorporar o sistema, como bem dito por sua mulher, Julie, em uma cena da película. Harry e Julie se separaram recentemente e o motivo alegado é que esta não aceita que sua vida se resuma a simples sobreposição de fatos cotidianos, ao seguimento de uma rotina tão bem estruturada no filme pela repetição de cenas que indicam o começo do dia, com data, horário e temperatura da cidade. Julie quer mais, quer uma vida de verdade, quer a felicidade de não viver preso nas responsabilidades que criamos a cada dia.
Após um encontro ocasional, no qual Harry, cansado de sua “vidinha” arrisca-se pela primeira vez, dirigindo às cegas numa noite chuvosa em que acaba por atropelar o cachorro de Georges, a morte inicial representa o início de uma vida: o cão morre e Harry nasce para uma vida de verdade. O relacionamento dos dois não é nada fácil, sobretudo pelas especialidades que Harry deve ter no trato com Georges. Exemplo emblemático é a tentativa de abandono que ocorre ainda no início do filme, seguido por uma das cenas mais emocionantes, na qual Harry retorna ao local em que havia deixado Georges e ao, encontrá-lo debaixo de chuva, os dois se abraçam emocionados e Georges se refere a Harry como um “amigo”.
Talvez a maior ironia do filme esteja contida em uma cena na qual a personagem Fabienne, a irmã de Georges, diz que não pode ficar com o garoto, pois a vida com este seria um grande peso, impossível de se realizar. Acontece que, com Harry, é exatamente o contrário que ocorre: é ao lado de Georges que esse aprende a viver, uma aprendizagem digna de Clarice Lispector; aprender os prazeres da vida e como os desfrutá-los da melhor forma possível; aprender a rir das situações esnobes da vida (como bem o faz já no final do filme, quando os “excepcionais” invadem a sala onde o empresário estava palestrando); e a curtir intensamente cada momento, cada mordida em um chocolate. Aqui, talvez, se encontre uma crítica às problemáticas jurídicas: possuímos a tendência de tudo normatizar e tentar enquadrar em esquemas pré-constituídos de felicidade, e dificilmente percebemos que ser feliz, às vezes, exige o rompimento de uma normatividade que nos recalca, nos limita e nos amputa. Uma cena que expressa de forma fantástica esse pensamento é a da lanchonete, na qual Georges com toda sua simplicidade come batatinhas livremente com a mão e depois de “desafiar” uma garotinha à distância, acompanha o pai da referida menina a reprimindo para que não coma daquela forma.
O filme se desenrola, então, a partir da aprendizagem que Georges promove a Harry, isto mesmo: é Georges quem ensina a Harry, é o “mongol” que ensina ao homem de terno. Ou melhor: é uma dupla aprendizagem, um ensinamento de mão dupla, pois Harry, em diversos momentos, também ensina Georges, ensina a ter força, ensina o sentimento que pode estar guardado em um abraço.
“O Oitavo Dia” é assim: um filme simples, como a história que pretende contar. Um filme que faz uso de imagens musicais, devaneios, cenários paralelos, uma linda fotografia e um roteiro que nos pega do início ao fim, em uma condução impossível de não se emocionar. Não é atoa que o filme foi o primeiro (e único) a dividir o prêmio do Festival de Cannes de melhor ator, que foi dividido entre Daniel Auteuil e Pascal Duquenne.
Último destaque para o fato do filme realmente conseguir sensibilizar (e muito) sem se apegar na apelação sentimentalista com o fato do personagem Georges possuir Síndrome de Down: o nome da síndrome sequer é dito ao longo de todo o filme, afinal, o tema central do filme não é a síndrome ou o personagem excepcional, e sim a discussão a respeito das relações humanas atuais e sua fragilidade e efemeridade.
P.S.: difícil entender o título do texto sem ver o filme. Confiram!


terça-feira, 4 de janeiro de 2011

No meio do motor havia uma válvula...

Ao funcionar, o motor de um carro sofre, gradativamente, um grande aquecimento, que é contido por toda uma engrenagem que funciona como um sistema de refrigeração. A partir de um ponto limite de aquecimento, uma espécie de ventiladorzinho, a ventoinha, é acionada, de forma automática, para impedir o superaquecimento do motor. Acontece que, para ser acionada a ventoinha precisa ser impulsionada e, nessa trajetória, pode encontrar como obstáculo a válvula termostática. Poucas pessoas, com toda certeza, possuem tais conhecimentos e, certamente, a família Rodrigues não os tinha.
Durante aquele feriado prolongado, de fim de ano, eles conseguiriam enganar a si próprias e estampar a alcunha de família unida e feliz. Talvez, quem sabe, até eles acreditassem nisso. Quatro dias para despedir de um ano e esboçar planos para mais 365 dias. Quatro dias para conviver amigavelmente como uma doce família e, tentando ignorar o tempo perdido ao longo de quase 360 dias separadamente divididos por intensas rotinas, trocar conversas e atualizar assuntos. Quatro dias para reverem parentes e tentar descontar prejuízos de uma singela distância de pouco mais de três anos sem dar as caras.
O filme estava em reprise e os garotos já o sabiam de cor e sorteado: desde a infância sempre era assim. A viagem da família era a viagem do pai e da mãe. Era a viagem a qual os pais poderiam rever seus inúmeros parentes do tempo da juventude na roça. Num passe de mágica, sujeitos transformados instantaneamente em parentes e, claro, a exigência da simpatia e elegância. Dizia a mãe: “Filhinhos, vocês devem pedir a benção para seus parentes”. Sem alternativas, explodiam por dentro, e por fora pediam, comportada e simpaticamente, a benção aos desconhecidos, ou melhor, aos temporariamente conhecidos. Os ossos do ofício, no caso os ossos de família, que deveriam ser roídos, ainda que duros. Ossos como ficar cerca de uma hora – três bilhões de ano, uma Terra inteira para se construir – ouvindo conversa de dois senhores, o pai e o tio, que exigiam esporádicos comentários que atestariam o interesse dos jovens pelo assunto. Três bilhões de anos para um almoço ficar pronto e a comida ser servida!
Quando saíram da pequena cidade natal, Araguari, o pai e a mãe esbanjavam um largo sorriso como a estampar a certeza de dever cumprido e missão bem realizada. Os filhos também estavam felizes, certamente pela certeza de que por cerca de três anos estariam livres do ritual. Mas a onda do mar baixou na praia e dissolveu o castelo de areia, e a aparente (mas tão frágil) felicidade se foi quando, já no estado de Goiás, a esposa para o carro no acostamento.
Domingo, duas da tarde, rodovia, ameaça de chuva, tempestade. A mulher, que nos últimos tempos quase não estava mais dirigindo, dessa vez decidiu conduzir o carro da família, uma antiga Parati. Pequeno-burgueses, classe média baixa, os Rodrigues estavam mudando de residência, construindo uma nova casa, e a condição financeira nunca foi das mais agradáveis, daí a escolha pelo carro antigo. A escolha, entretanto, esconde muito dele também, do pai. O patriarca, talvez por ter crescido comendo “o pão que o diabo amassou”, trouxe consigo para a cidade grande um incrível “espírito de pobre”, como dizia o caçula. Os garotos cresceram se acostumando com o pai contando até as moedas, tampando o sol com a peneira quando algum problema apresentava; em seu entendimento, evitando gastos maiores. Quando o chuveiro queimava o pai evitava ao máximo chamar um técnico e só o fazia quando via todas as chances de obter sucesso mostrando seus dotes eletricistas irem por água abaixo. O máximo que geralmente fazia era contratar algum parente para resolver a pendenga. Por isso, antes da viagem levou a Parati para o compadre revisar. Naquele momento, ele lembrou: ainda perguntara ao compadre o que era aquela água escorrendo pelo pneu, mas, até mesmo pela grande confiança no sangue, na família, se acalentou quando alertado que se tratava apenas da água da chuva.
A matriarca, como dito, quase não mais dirigia o carro e naquele momento estar na direção poderia ser um verdadeiro milagre, talvez o único a ocorrer naquela tarde. Isto porque, medrosa como era, ao perceber o sinal da temperatura brilhando em vermelho fogo no painel do motorista, logo parou o carro, seguida por um cheiro inconfundível de borracha queimando. Se o dedinho de Deus não agisse o pai estivesse dirigindo o veículo, turrão como era, provavelmente só pararia quando o motor fundisse. Às vezes era questão de honra, afinal vindo de uma família conservadora e machista ao extremo, precisa mostrar que estava tudo sob controle, sob controle dele. Também por isso precisou, nos momentos seguintes, mostrar que entendia um pouco de mecânica e do funcionamento de um carro. Até palpitou certo: talvez faltasse água no tanque de refrigeração do motor. Não demorou, contudo, perceber que o buraco era mais embaixo e que precisariam levar o carro até algum mecânico.
Sabiam que estavam pertos de Mazargão, talvez faltasse pouco menos que três quilômetros. Decidiram – o pai decidiu – arriscarem e, então, conseguiram chegar até à borracharia da cidade. O plano já não daria mais certo: quando almoçaram na casa do padrinho do pai, pensaram sair rápido para não pegar um forte trânsito de volta do feriado, mas, agora a chuva se aproximava, o tempo passava e o medo de, quando o carro ficar bom, se ficar, pegarem um congestionamento, se fazia presente.
Na pequena borracharia, à beira do trevo de Mazargão, conheceram a figura: seu Osvaldo. Moreno humilde e conversador que indicou: “O reservatório de água está furado. Só vou soldar ele e depois vocês já podem seguir viagem!”. Depois disse que, talvez, o problema não fosse só esse e envolvesse a tal da ventoinha. Nesse caso, teriam que remexer no motor para tentar retirar uma coisa chamada válvula termostática.
Abriram as cortinas e começou o show. Tudo como imaginado pelo filho: querendo dar uma de macho-alfa da família, o pai logo começou a conversar com seu Osvaldo, puxando altos papos, rememorando a goianidade e destrinchando o Tinoco, alguém que perceberam ser conhecido de ambos. Parecia quase inevitável – era necessário – e o pai punha-se a dizer: “Estão vendo, meus filhos, é assim que se faz. Prestem bastante atenção no que o seu Osvaldo está fazendo”. E com um largo sorriso, como que dizendo “estou zelando pela paz de minha prole”, voltava-se para a conversa com o desconhecido amigo íntimo.
Quando seu Osvaldo disse que o problema realmente era a ventoinha, com tamanha demora a mãe decidiu sentar no banco da rodoviária ao lado e se afastar um pouco. Foi rezar. O caçula acompanhou a mãe. Foi pensar. Pensou na peça-de-teatro que estava vendo à sua frente e, principalmente, no papel desempenhado pelo pai. Passou do pai ao simpático borracheiro. Como ser tão simpático assim? Viu-se no meio de uma farsa, duplamente aceita e sigilosamente correspondida.
Depois de mais de duas horas e de uma espera corrosiva, a válvula termostática foi retirada e a ventoinha estava pronta para ventilar. A família estava pronta para partir. Antes, contudo, a peça deveria ser encerrada e o ato final era o mais importante: o patriarca perguntou ao mecânico quanto havia ficado o serviço. Não hesitou: 150 reais! “Mas, como?!”, se indagou o garoto. O pai, porém, também não hesitou em pagar a quantia posta, para a surpresa de todos. A atitude do muquirana deixou perplexo o caçula, que a essa altura do campeonato tinha certeza que um pequeno problema no tanque de água do veículo foi transformado, malandramente, pelo mecânico em uma saga de horas a fio e uma válvula – além de um gordo orçamento.
Antes de saírem, talvez pela primeira vez, o garoto fitou seus olhos nos olhos de seu Osvaldo e este lhe deu um sorriso. Um sorriso irônico, talvez. Não, um sorriso de necessidade. O menino percebeu, então, os papéis desempenhados na peça, o papel de sua família e o papel do moreno. Deu-se conta, também, de quem mais havia lucrado com toda a situação.
Os Rodrigues voltaram ao itinerário e no carro o pai disse: “Vocês perceberam, filhos, o quanto foi importante prestar atenção em tudo o que o seu Osvaldo dizia?”. Na saída de Piracanjuba o carro parou de novo.