sábado, 21 de janeiro de 2012

Quando me vi tendo de viver comigo apenas (e com o mundo)




QUANDO ME VI TENDO DE VIVER COMIGO APENAS 
(E COM O MUNDO)


Conhece-te a ti mesmo
E se eu não gostar do que encontrar dentro do espelho?
Ignora-te a ti mesmo
Alone
Eu só queria esquecer tudo
Mas, como, se quando olho ao redor só vejo minhas sombras?
Eu queria poder de tudo lembrar
Mas, como, se meu reflexo se dissolve na solidão de um espelho?
Tardes, noites, sozinho, desligado, alheio, distante.

Eu, eu mesmo: e eu again
Eu, eu mesmo: against me
Eu fui e deixei meus amigos
Agora estes vão e fico aqui (sem eles)
Tenho pena de mim?
Não tenho pena de ninguém.

Continuo aqui, sempre assim
Sempre do mesmo jeito: nunca assim
Tão solúvel em pensamentos que vão e voltam,
como a transpassarem oceanos
Oceanos que estão dentro de mim
Abismos que me separam de mim e do outro
O que é senão o outro aquilo que vejo e penso ser, pra mim?
Não é nada além de um Mondego prateado pela lua

Aquelas noites parecem estar a quilômetros da memória
A quantas milhas, então, estariam as minhas lembranças?
Quantos céus me separam do retorno?
Eu retornei a mim mesmo
E agora, consciente de que nunca sereno estarei,
o que me resta?

Agora me resta um cubículo a ser abandonado,
Me resta lugares a serem conhecidos,
Me resta surpresas a serem vividas,
Me resta despedidas a serem choradas,
Me resta abraços a serem dados, one more time,
Me resta acabar com esta espera.

Ayer, maybe, eu deveria ter ido.




domingo, 15 de janeiro de 2012

E o que há depois do sétimo dia?



Quando li, quase que descompromissadamente, em uma publicação no facebook, uma menina dizendo que “Inquietos” havia sido o segundo filme que conseguira fazê-la chorar, talvez por curiosidade, ou uma tentativa de encontrar o que ela havia sentido, decidi vê-lo. Confesso que também não entrego facilmente minhas lágrimas a todo filme que vejo. Sem levar em consideração algumas poucas lágrimas ora aqui, ora acolá, o único filme que realmente conseguiu arrancá-las em profunda intensidade foi o francês “Le Huitième Jour”, desde então minha película de cabeceira. O que mais me conquistou, anos atrás, em “O Oitavo Dia”, foi sua maravilhosa quebra de expectativa, deliciosa na profundidade da leitura apresentada. Desconstrução: pensava que seria mais um filme a tratar dos portadores da “síndrome de Down”, a barganhar lágrimas num melodrama de tolerância e superação. Ledo engano. Ao longo de seus 118 minutos sequer foi pronunciada a palavra “síndrome”, pois retratá-la não foi, nem de longe, o objetivo do longa em questão. Era um filme a refletir a vida e a forma como a encaramos no turbilhão de um dia-a-dia estressante, que nos rouba o sorriso que deveríamos dar para a amada todas as manhãs e o tempo para um sanduíche com as filhas depois do colégio. Era Harry, era Georges.
A sensação que tive assim que terminei de assistir “Inquietos” foi exatamente essa: uma quebra de expectativas. Ao ler a sinopse pensei que veria uma digressão sobre a vida e a pericidade da mesma. Uma poética sobre o tempo a se escorrer. Talvez um melodrama sobre uma jovem à beira da morte. Findados os 91 minutos, entretanto, estive, de novo, de frente com outra desconstrução: sim, o tempo fala sobre vida e tempo, mas este não foi, nem de perto, a temática que mais me despertou interesse. Fui conquistado por uma alegoria do amor. Isso mesmo, apesar da vida e da morte, o filme é sobre o amor.
Aqui, temos Enoch, temos Hiroshi. O japonês é o emblema da morte, já consolidada, há décadas. Um kamikase morto na segunda Grande Guerra, que agora “aparece” para Enoch. A simbologia da morte, contudo, perpassa também o garoto. Morto por três minutos, em coma, após o falecimento de seus pais em um acidente de carro, Enoch, de volta à vida, estabelece uma forte ligação orgânica com sua antítese. Passa os dias a freqüentar clandestinamente velórios de estranhos. Impossível foi não lembrar o instigante “Clube da Luta”, quando fui apresentado ao rapaz que migrava de reuniões a reuniões dos mais variados grupos de pessoas “tortas”, com os seus mais diversos problemas e idiossincrasias. O que Enoch faz ali? Uma pessoa “torta”, um anti-herói, desconcertante. Um penetra de funeral, que saiu da escola, que não tem carro, e com um amigo morto.
“Torto” (ou, inquieto/a) talvez também seja o melhor adjetivo para se referir à Annabel. Aqui, de novo, a relação com a morte: a menina tem câncer e expectativa de vida – três meses. Somos, então, ao longo do filme apresentados a um panorama formado por símbolos sempre a remeteram a morte: as formigas que se prostram perto de cadáveres e ali desovam e alimentam seus filhos, num exercício quase que de frieza; o pássaro que intui sua morte e ao acordar no dia seguinte, espantado, põe-se a celebrar a vida; o corpo no necrotério, tão singular em uma história tão não-contada.
Mas, qual é, afinal, o “papel” da morte (tão presente, então, porque não personificada também?) na construção do filme? Penso que o mesmo que George, ao adentrar à vida de Harry, representa a este. A morte não é a personagem principal da película. As personagens centrais são Enoch e Annabel: um menino infantil, com um amigo imaginário, permanentemente triste, que invade velórios, que joga pedras no trem a passar, que não conversa com sua tia; uma menina que se veste como um rapaz, que perde seu tempo lendo sobre pássaros aquáticos, que na iminência da morte não se apega fervorosamente a um deus e sim vangloria o bom Charlie, que esboça desenhos de formigas. Estranhos, patéticos, imperfeitos? Verdadeiros. Inquietos. E onde está o amor senão na inquietação?
Com lindos diálogos sobre vida e morte, a me remeter a serena conversa entre Uxbal e seu pai no igualmente “torto” (até no título) “Biutiful”, “Inquietos” é uma poesia de imagens na qual, sim, realmente as lágrimas rolam, onde viver é fácil, morrer é fácil e amar é difícil. E no oitavo dia, deus levou Annie e sentiu que o amor é belo.


sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Eu não sei na verdade quem eu sou



Incômodo. Outra não seria a palavra mais apropriada para sintetizar o que senti ao final do filme “A Pele que Habito”, do prestigiado espanhol Pedro Almodóvar. Tal incômodo, de fazer o espectador se contorcer todo na tentativa de digerir tudo o que está passando a sua frente, me pareceu causado, sobretudo, pelo confronto. Ao desenrolar do filme é inevitável não nos colocarmos no lugar da personagem Vicente, vestir a sua pele. Quem é posto cara a cara com o espelho é mais do que a personagem, é o próprio espectador, que é lançado ao olho da velha indagação emblemática da esfinge: você conhece a ti mesmo? Ou pode ser devorado?
Pele. Revestimento. Proteção. Fragilidade. O nosso contato mais íntimo e direto com o mundo que nos rodeia. Nas deformidades traçadas em contato com esse ambiente, ora amistoso, ora perverso, fincadas e eternizadas em marcas, cicatrizes e queimaduras, definimos nossas digitais, indicamos aos outros quem somos. A sinalização do sujeito também se convalida ao próprio? A faceta da moeda é dupla: quem sou para os outros e quem sou para mim mesmo? A resposta talvez seja única. Talvez. Pode ser que não haja. Pode ser mensurável ou apreensível. Divagações à parte, a materialidade sugerida no filme é o que mais provoca: a deslocação é escancarada por uma cirurgia.
Os artifícios usados por Almodóvar para dar coesão à ideia proposta foram o que mais me prendeu. E o principal artifício foi o embasamento dado aos personagens em cena. Aqui ninguém é moçinho nem vilão. É possível, então, delimitar nesse contexto uma ética, uma moral, ou, mais a fundo, uma justiça? Inicialmente, Vicente é mostrado como o rapaz que estupra uma jovem, aparentemente perturbada, numa festa de casamento. Robert Ledgard é o pai da jovem abusada, que anteriormente estava internada em uma clínica de reabilitação, por ter presenciado o suicídio de sua mãe, que pulou da janela de sua casa. Na primeira oportunidade de ressocialização, o estupro. E a pele de vilão é dada a Vicente. Quando Robert seqüestra o jovem somos lançados ao questionamento: é justo? Tal indagação, já apresentada no igualmente bom “O Segredo dos Seus Olhos”, não é, entretanto, nem de longe, a dúvida mais instigante. É apenas o fio condutor; o estupro é um pano de fundo e adiante é praticamente redimido por outro estupro. Uma mórbida compensação.
O artifício estético de encadeamento narrativo colocado por Almodóvar (dessa vez muito mais feliz do que em “Abraços Partidos”, de estrutura também fractal) é o que resulta, materialmente, na transição de peles, papéis, máscaras. O olhar camaleônico que o espectador lança sobre um personagem não se equipara, também, ao olhar que um transeunte lhe projeta ao cruzar contigo na rua?
Transitando de 2012 a 2006, no desenvolver do filme, gradualmente as peças vão se encaixando num anestesiante e provocativo quebra-cabeças. Depois de seqüestrado e mantido em cativeiro, Vicente é submetido a uma cirurgia de mudança de sexo pelo cirurgião Robert. É então que nos damos conta de que a bela e sexy mulher do início da película é o boy que trabalhava em uma loja de costura. Mas, são a mesma pessoa? Quem é Vera? E, ainda, quem é Vicente? Quem sou eu? O que me define enquanto sujeito? As roupas que visto, os filmes que vejo, as músicas que ouço, as garotas que paquero, as brigas que venço, os livros que leio, as discussões que esquivo, os gols que marco? A pouco conversava com um amigo que me dizia que na Alemanha, após o escândalo do não-apagamento dos dados dos perfis do facebook e por uma provável utilização dos mesmos por analistas de empresas, alguns de seus amigos mudaram seus nomes na rede social, para não serem identificados. Um chegou até mesmo a apagar qualquer informação pessoal, deixando em seu mural apenas a informação: “Gender: male”. O gênero masculino, ou feminino, de acordo com aquele que agora me lê, é a informação básica que constitui nossa identidade? Qual, afinal, é a informação que o ser nascente Vera deixaria em sua página do facebook como alegoria de seu posicionamento no mundo, as digitais da pele de seu dedo? “Gender: female”?
Muitos outros aspectos despertados pela película poderiam aqui ser tratados, tal como a questão do reconhecimento com a imagem que sobre nós mesmos projetamos, tão presente na cena em que a falecida esposa de Robert tem de encarar sua nova identidade (nova pele) no reflexo da janela, ou a ligação que Vera projeta sobre Robert, em cima da qual poderíamos abordar intensos debates psicanalíticos. Mas, pelo pouco espaço a que devo me deter, sem dúvida, a impressão que mais se perpetuou em minha pele depois de assistir o filme de Almodóvar se iguala a tensão provocada pelas linhas de Lewis Carroll: “Tudo está tão esquisito hoje! E ainda ontem as coisas estavam tão normais... Será que durante a noite eu virei outra pessoa? Deixe-me pensar: Hoje de manhã, quando acordei, eu era a mesma pessoa? Tenho uma vaga lembrança de ter me sentido um pouquinho diferente. Mas se eu não for eu mesmo, a próxima pergunta é: Quem eu sou? Essa é que é a questão!”.


Qual das cápsulas? A azul ou a vermelha?



Now it's time to leave the capsule if you dare. A cápsula da canção de Bowie talvez seja o óvulo colocado a observação do cientista ou a carne exposta ao abrigo do vidro, transparente, mas acobertador. No longa-metragem de Tom Tykwer, contudo, a cápsula a ser rompida é a mesma que nos reveste enquanto sujeitos lançados a um mundo tão bem delimitado, com regras a serem seguidas, espaços a serem ocupados e uma normalidade a ser resguardada.
O filme “Drei” nos lança o desafio de radicalizar e romper, deixar para trás todos os valores tão bem consolidados que temos do que é normal, do que é aceitável, do que deve ser respeitado. Fugindo de qualquer discurso de tolerância, o filme vai muito mais além e realmente coloca em xeque a questão da sexualidade. Diplomático de forma alguma, “Drei” é profundamente poético, tanto em seu aspecto estético, com tomadas numa imensidão branca ou enquadramentos de três pequenas cenas a rolarem simultaneamente, quanto em sua materialidade que, em primeira e última instância, ousa. A sexualidade, a vida, os valores, as regras, a sociedade: tudo é desnudado e colocado em foco, num grande fundo branco. O branco é senão o puro, o transparente, não impregnado de regras e normatividades a estancá-lo.
A primeira impressão que me perturbou diz respeito ao novo. Apresentados a um casal que trás consigo o peso de vinte anos de vivência desde o primeiro beijo, refletido em uma rotina desgastante e constantes momentos de dissolução do romantismo de outrora, postos um a frente do outro como um fardo, pesado. Mas, aqui não é um lado que busca se conhecer (ou se reconhecer, se resgatar) em um terceiro elemento. São os dois lados. A dupla presença, entretanto, não existe. É o um ou é o três. Independentemente, ela encontra Adam e ele encontra Adam. A vivência a dois é apenas o pano de fundo a fomentar a necessidade de rompimento, que será entendida, dolorosamente ou não, no silêncio de uma sala de cinema, alone. Ou nas lágrimas a escorrerem depois de digerido o novo. É um verdadeiro parto com as velhas concepções que arraigadas em nossa própria construção de subjetividade se impregnam como uma pele a nos habitar. O novo que se relaciona com o velho. Não é atoa que um antigo caso se mostra paralelamente ao momento em que a primeira transa acontece.
E o filho teria, hoje, 17 anos. Como foram vividos, contudo, estes últimos 17 anos? No impacto da morte materna, a descoberta da pericidade da vida, a escorrer em um recipiente: aquele que do lado de fora estampa uma etiqueta com o dizer “normal”. Mas, esta é a normalidade? O que é, afinal, ser normal? Somos esse líquido contido e etiquetado? Devemos nos colocar nesse recipiente, enquanto nos vemos dissolver, como um testículo a ser amputado?
No olho do furacão de um Brasil borbulhando em discussões a respeito da possibilidade legal ou não do casamento homoafetivo, das críticas a lei da anti-homofobia, da pronunciação do STF a cerca da adoção por casais do mesmo sexo, “Drei” vai ao cerne da questão: o que tudo isso nos mostra não é a nossa obrigação de questionar, discutir e colocar em xeque os valores aos quais tradicionalmente fomos expostos? A sexualidade é mais ampla e complexa, e olhá-la unicamente sob o ângulo da heteronormatividade é questão de posicionamento, político, cultural e social, que trás consigo interesses a serem preservados.
Dias atrás, numa conversa de bar, o amigo de um amigo pôs-se a falar contra a “abertura à causa homossexual” no direito brasileiro. Citou, entre vários argumentos, que transitavam entre o racionalizável e o religioso, a defesa do que é natural. Ora, “Drei” questiona exatamente isso: “Às suas ideias deterministas de biologia”, é o que aquele que trás (trás? liberta? demonstra? Na verdade não trás nada, apenas ajuda a aflorar aquilo que vem da autodescoberta subjetiva) o “novo” diz ser preciso abandonar. Dizer adeus. Talvez seja a isso que a bancada religiosa de nosso velho país esteja precisando fazer: dizer good-bye.
No bojo de bons filmes que vejo atualmente a trazer à discussão a complexidade que faz parte de nossa sexualidade, como já apontada nos estudos de Kinsey, “Drei” me trouxe à lembrança o bom “Shortbus”. Ao questionar a fruição verdadeira do orgasmo e tudo o que isto compreende, em seu ponto de epifania, todas as luzes se acendiam. Aqui, em “Drei”, ao fazer o rompimento com a “naturalidade”, passamos a conhecer melhor “quem eu sou” e, em três, quem nós somos, todos nós. Em três as luzes se ligam. E abre-se ao fundo a música de Bowie. “Agora é a hora de sair da cápsula se você ousar...”.