quinta-feira, 26 de maio de 2011

Valsa, A Dois


Ao grande amigo, Wendel Rosa Borges.
Let it Be, deixe Estar. A dor passa e se eterniza em nossas lembranças.

Um belo dia o Existir se apaixonou. Ele, que sempre andava a esmo e vivia dizendo que não seria capaz, jamais, de se apaixonar, logo ele, caiu de amores. Olho no olho. Que olhos. Fixou, então, em uma ideia: desvendar o segredo por trás daqueles olhos de ressaca. Indeciso e inseguro, como sempre, ele passou a se indagar insistentemente se ela também estaria sentindo algo tão forte assim. Pensou que não, provavelmente não. Só ele seria tão louco ao ponto de, em tão pouco tempo, por tão pouco fundamento, se entregar tão tresloucadamente. Decidiu esquecer ela. Mas, esquecer o quê? Ainda não havia nada, e ele já se martirizando. Outra decisão: enterrar, afogar o sentimento. Porém, decisão por indecisão, prevaleceu o espírito sempre atordoado, e sempre que a via não conseguia: o coração se punha a disparar, a mão ficar gelada, a respiração ofegante. Decidiu, até que enfim, tomar a última decisão: iria botar seu coração para fora, entregá-lo a sua amada, talvez, quem sabe então assim ela cuidasse dele.
Mas ela era tão linda. Como o Existir foi se apaixonar justamente por ela, a Dor? Seus amigos o aconselharam, sensatamente, a olhar a Carolina, a gostar da Andrea, a se entregar a Laura. Não, ele não quis. Para o Existir havia só ela: a Dor. E mesmo que ela não soubesse, sequer desconfiasse, para ele já bastava saber que com ela estava tudo bem. Olhava-a de longe, com olhos de comer fotografia, sempre esperando que ela virasse num momento absorto, e retribuísse o olhar insólito. Ela nunca olhava, ele não se abatia. Um dia olharia...
Um dia a Dor olhou. Olhou e permaneceu estática. Como ele era lindo. Simples, perfeito. Em um momento imaginou que os dois poderiam ser só um. Um só. Encontrara o que há tempos estava perdidamente procurando. Ficou sem saber o que fazer. Por anos procurando e o que fazer quando a razão de tanta procura se constrói tão insolitamente em nossa frente? Decidiu não fazer nada. Ora, não faria nada. Era obrigação dele, como macho-alfa, acabar com o fardo de esperar. Ele, ele deveria dizer. Sabia que estava tão perto, mas por que não responder ao seu chamado?
O Existir se pôs a imaginar. Imaginou mil situações possíveis e impossíveis. Algumas trágicas, outras dignas de um célebre final de Hollywood. A realidade, contudo, não era mirabolante. O Existir era simples. O número grandioso, nas vias de fato, se converteu em um sofrido exercício de superação. O Existir superou a indecisão, a fraqueza, a covardia, o medo. A Dor aceitou o convite. Seria uma valsa.
Apenas uma valsa. Não era uma vida inteira. Não era um contrato oneroso. Não era uma obrigação indelegável. Não era um compromisso inalterável. Não era uma entrega completa. O Existir queria apenas uma pequena entrega. Que ela se entregasse ao desejo, não muito complicado, não muito difícil de perceber, desejo de pagar pra ver. Tão resoluta e certa de si, ela pagou pra ver. Ele merecia. Havia coragem e ele chegou nela. Havia medo e, aos poucos, com alguns passos de valsa, este se desfez. O Existir conheceu o sorriso da Dor, leu o seu olhar e a desestabilizou. Ela se entregou completamente, assinou tratados, contratos, contraiu obrigações. Perdeu o chão. Ganhou o amor. Ganhou um companheiro. Perdeu a solidão. A dois.
Desde então, conta-se a lenda, a Dor nunca mais se desgrudou do Existir. Sábia, deixou o rapaz viver sua vida tranquilamente, sem muito apego. Não queria sufocar. Mas, estava sempre lá. Logo depois dos momentos de maior felicidade, estava lá a acompanhar o seu amado. Perto de seu aniversário, em seu inferno astral, vinha e trazia aconchego e refúgio. Trazia, dialeticamente, um grande sofrimento, uma vontade de não-Existir. Consigo vinha, contraditoriamente, uma vontade louca de gritar e a triste constatação de que o grito não seria ouvido por ninguém. Gritar e não ser ouvido. É o presente de quem verdadeiramente ama: explicar, pacientemente, que, muitas vezes, gritar não adianta. Não adianta, então pra quê chorar? Calma, calminha, ainda não é hora de se desesperar. Cabeça no colo, diz: “calma, você ainda tem muito o que aprender”. E é sempre assim. Todas as vezes que o Existir vive intensamente e, no turbilhão de atividades e falsas ideias, acaba por esquecer sua essência, esquecer quem verdadeiramente é, vem a Dor e aperta o “stop”. Lava as feridas da vida, cicatriza as marcas da estrada.
Talvez por tamanha timidez inicial, por ter sido tão difícil romper com a natural limitação subjetiva, e pelos momentos juntos vividos, compartilhados, olhados, os dois se integravam de forma jamais vista antes. Assim é. E todo mundo diz que ele completa ela e vice-versa, que nem feijão com arroz. Agora sim, a última decisão: decidiram juntos, ser um só. Foi então que a dor se fundiu ao existir, e dele nunca mais saiu. Faceira, sempre aparece, trazendo sofrimento, trazendo purificação, catarse, epifania. É o que os mais sábios sempre dizem: Existir, dói.

Heitor Moreira de Oliveira, 26 de maio de 2011.



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