segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A Igualdade é Branco Fosco


Um ano de sacrifício e, enfim, alcançara sua meta: chegava à Universidade de São Paulo, por ele tão carinhosamente chamada apenas de USP. O sonho de uma vida inteira, talvez dele, talvez de seus pais, mas uma vida inteira, uma vida que clamava novos ares. E assim o mineirinho do interior punha seus pés na grande capital. Inquieto, ainda se deslumbrando com a beleza de tudo o que via, cruzou o Tietê e chegou, finalmente, ao seu destino final: Armênia. Destino, parada ou morada. Ali passaria os cinco anos de seu curso. Os próximos cinco anos ou a próxima vida que chegara, para sua alegria e temor.
Com pouco dinheiro nos bolsos, teve de ir morar em uma república de estudantes. Acostumado com o mimo de sua casa, com as mordomias de sua mãe e com os chamegos de seu pai, agora, jogado em uma megalópole gigantesca, embasbacado com um ritmo frenético, saudade e medo chegaram quase instantaneamente, para o seu desespero.
Medroso, sim. Alguns colegas até o chamavam de boiolinha, diziam que ainda nem crescera direito, e lá ia o menino buscar refúgio nos ombros da mãe. Não que de tudo estavam errados: aos dezoito anos ainda dormia com a luz acesa. Não foi atoa, também, que a escuridão da república, toda noite, lhe botava um medo talvez maior do que tivera anos antes com um tal de bicho-papão. O pavilhão ao lado, no mesmo andar, toda noite atrapalhava sua tranqüilidade e apavorava seu sono. Decidiu, toda noite, levantar e deixar a porta um pouquinho aberta, daí que a escuridão se dissiparia, ao menos um pouquinho, com os feixes da luz que vinha do corredor que dividia os três pavilhões do mesmo andar. Mas a pequena abertura, com certeza, facilitaria os sons misteriosos e assustadores. Juntou uma graninha e comprou um fone de ouvido, algo simplório, mas funcional, que o ajudaria a manter a tranqüilidade do bezerro ao mamar nas tetas da mãe – agora a léguas de distância.
O dinheiro gasto para se comprar o fone, não qualquer fone, algum que desse jeito em seu medo, foi a gota d’água para o quase-fim do dinheiro do mês. Chegada em São Paulo, documentos a providenciar, coisas a comprar, os aluguéis a pagar, resultado: grana saindo ralo abaixo. Teria de cortar algum gasto. Escolheu: a alimentação. Se preciso fosse, faria fotossíntese, comeria ar, passaria fome, mas gastaria poucos reais.
Foi ao supermercado. Em verdadeira greve de fome, comprou poucas coisas, todas milimetricamente contadas. Sabia, por exemplo, que havia seis ovos e oito pedaços de carne. O pior é que, com o estômago roncando, talvez nem o medo mais desse as caras. Sai o medo e entra a inveja. Os colegas de mesmo pavilhão, sete sujeitos estranhos com quem dividia o mesmo lugar-no-mundo, sem grandes problemas financeiros, sempre chegavam com as mais variadas guloseimas. Eram doces, carnes, queijos, legumes e até importados. E na mesma sacola, um olharzinho meio de lado, beirando as comidas alheias e se esforçando para não babar frente a tantas iguarias. Teria que se contentar com a humilde comida que tinha à disposição. Afinal, fruto de uma conservadora e rígida educação, pautada no civilismo e no respeito mútuo pelos bons costumes, moral e integridade, jamais passaria pela sua cabeça – pela cabeça talvez, mas não pelo seu braço – mudar o destino de qualquer alimento.
Até aquele dia, em que, cansado, depois de uma manhã de intenso e cansativo estudo na USP, chegou até a geladeira e notou a triste ausência de dois pedaços de bife e de três ovos. Fruto de uma conspiração internacional, começou a traçar os suspeitos. Mas, só podia ser ele: o baiano. Desde o princípio que não ia com a cara daquele sujeito. Tão alegre, tão divertido, tão não-igual. Uma desigualdade afrontante. Foi ele.
Criado no seio da igualdade, ele, que cresceu ouvindo auspícios do gênero “trate todos com o devido respeito que lhe tratam”, decidiu o que iria fazer. Não por vingança, não. Por educação. Era seu dever educar o baiano folgado para que não mais fizesse aquilo e que não mais faltasse com o respeito aos demais. Abriu a geladeira, foi ao estoque do baiano e tomou-lhe três pedaços de bife e cinco ovos. Aproveitou e deu uma ligeira beliscada no queijo cheddar da carioca. Já haviam quebrado a civilidade mesmo...



No mesmo dia, ao entardecer, voltando da biblioteca, encontra sua morada em uma quase-assembleia. Era mais uma reunião. O baiano havia convocado. Dizia que estava surpreso com a conduta de alguém, que faltara com o trato igual perante os companheiros e, na calada, roubara-lhe comida. O mineirinho, talvez um pouco não-mineiro, não se fez de rogado e soltou verbos e adjetivos sobre o baiano. “Mas, como? Sei que foi você! Você, seu falso, que levantou durante a noite e roubou algumas de minhas coisas!”. Não, não havia sido ele e, depois de completamente provado, faltava ao mineiro arrogante apenas um buraco onde meter-lhe as fuças.
Mas, afinal, quem roubou sua comida? Indignado, agora já totalmente sem medo algum, encostou a cabeça no travesseiro e caiu no sono. No dia seguinte, dois bifes a menos. E o que fazer dessa vez? O colo da mãe estava a quilômetros de distância. Apenas entrou em seu quarto, e pôs se chorar. Tomou seu caminho, subnutrido, rumo a USP. Estou, voltou, não comeu e dormiu. Caiu no sono e nem se deu conta de que, pela abertura que continuava a deixar, dia após dia, o subnutrido do pavilhão ao lado, chegava até a geladeira e roubava o mínimo para saciar sua fome e algumas delícias a mais. Afinal, em seu pavilhão que não iria de fazer isso. Afinal, lá todos eram iguais.

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