domingo, 15 de janeiro de 2012

E o que há depois do sétimo dia?



Quando li, quase que descompromissadamente, em uma publicação no facebook, uma menina dizendo que “Inquietos” havia sido o segundo filme que conseguira fazê-la chorar, talvez por curiosidade, ou uma tentativa de encontrar o que ela havia sentido, decidi vê-lo. Confesso que também não entrego facilmente minhas lágrimas a todo filme que vejo. Sem levar em consideração algumas poucas lágrimas ora aqui, ora acolá, o único filme que realmente conseguiu arrancá-las em profunda intensidade foi o francês “Le Huitième Jour”, desde então minha película de cabeceira. O que mais me conquistou, anos atrás, em “O Oitavo Dia”, foi sua maravilhosa quebra de expectativa, deliciosa na profundidade da leitura apresentada. Desconstrução: pensava que seria mais um filme a tratar dos portadores da “síndrome de Down”, a barganhar lágrimas num melodrama de tolerância e superação. Ledo engano. Ao longo de seus 118 minutos sequer foi pronunciada a palavra “síndrome”, pois retratá-la não foi, nem de longe, o objetivo do longa em questão. Era um filme a refletir a vida e a forma como a encaramos no turbilhão de um dia-a-dia estressante, que nos rouba o sorriso que deveríamos dar para a amada todas as manhãs e o tempo para um sanduíche com as filhas depois do colégio. Era Harry, era Georges.
A sensação que tive assim que terminei de assistir “Inquietos” foi exatamente essa: uma quebra de expectativas. Ao ler a sinopse pensei que veria uma digressão sobre a vida e a pericidade da mesma. Uma poética sobre o tempo a se escorrer. Talvez um melodrama sobre uma jovem à beira da morte. Findados os 91 minutos, entretanto, estive, de novo, de frente com outra desconstrução: sim, o tempo fala sobre vida e tempo, mas este não foi, nem de perto, a temática que mais me despertou interesse. Fui conquistado por uma alegoria do amor. Isso mesmo, apesar da vida e da morte, o filme é sobre o amor.
Aqui, temos Enoch, temos Hiroshi. O japonês é o emblema da morte, já consolidada, há décadas. Um kamikase morto na segunda Grande Guerra, que agora “aparece” para Enoch. A simbologia da morte, contudo, perpassa também o garoto. Morto por três minutos, em coma, após o falecimento de seus pais em um acidente de carro, Enoch, de volta à vida, estabelece uma forte ligação orgânica com sua antítese. Passa os dias a freqüentar clandestinamente velórios de estranhos. Impossível foi não lembrar o instigante “Clube da Luta”, quando fui apresentado ao rapaz que migrava de reuniões a reuniões dos mais variados grupos de pessoas “tortas”, com os seus mais diversos problemas e idiossincrasias. O que Enoch faz ali? Uma pessoa “torta”, um anti-herói, desconcertante. Um penetra de funeral, que saiu da escola, que não tem carro, e com um amigo morto.
“Torto” (ou, inquieto/a) talvez também seja o melhor adjetivo para se referir à Annabel. Aqui, de novo, a relação com a morte: a menina tem câncer e expectativa de vida – três meses. Somos, então, ao longo do filme apresentados a um panorama formado por símbolos sempre a remeteram a morte: as formigas que se prostram perto de cadáveres e ali desovam e alimentam seus filhos, num exercício quase que de frieza; o pássaro que intui sua morte e ao acordar no dia seguinte, espantado, põe-se a celebrar a vida; o corpo no necrotério, tão singular em uma história tão não-contada.
Mas, qual é, afinal, o “papel” da morte (tão presente, então, porque não personificada também?) na construção do filme? Penso que o mesmo que George, ao adentrar à vida de Harry, representa a este. A morte não é a personagem principal da película. As personagens centrais são Enoch e Annabel: um menino infantil, com um amigo imaginário, permanentemente triste, que invade velórios, que joga pedras no trem a passar, que não conversa com sua tia; uma menina que se veste como um rapaz, que perde seu tempo lendo sobre pássaros aquáticos, que na iminência da morte não se apega fervorosamente a um deus e sim vangloria o bom Charlie, que esboça desenhos de formigas. Estranhos, patéticos, imperfeitos? Verdadeiros. Inquietos. E onde está o amor senão na inquietação?
Com lindos diálogos sobre vida e morte, a me remeter a serena conversa entre Uxbal e seu pai no igualmente “torto” (até no título) “Biutiful”, “Inquietos” é uma poesia de imagens na qual, sim, realmente as lágrimas rolam, onde viver é fácil, morrer é fácil e amar é difícil. E no oitavo dia, deus levou Annie e sentiu que o amor é belo.


2 comentários:

  1. Encontro-me num dilema. Não quero ler suas análises antes de assistir aos filmes mas, se já os vi e li, tenho que assistir novamente...

    O seu olhar é singular... torna-os ainda mais especiais.

    ResponderExcluir
  2. Como sempre uma bela análise Heitor, realmente é um tipo de filme que você já começa a assistir sabendo que o final não será feliz, assim como em Melancolia, me sinto perdido em meio a dualidade da tristeza pelo final inevitável e pela beleza como a vida é retratada, simples, humana. No fim das contas o final é feliz, a sua própria maneira...

    ResponderExcluir