sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Eu não sei na verdade quem eu sou



Incômodo. Outra não seria a palavra mais apropriada para sintetizar o que senti ao final do filme “A Pele que Habito”, do prestigiado espanhol Pedro Almodóvar. Tal incômodo, de fazer o espectador se contorcer todo na tentativa de digerir tudo o que está passando a sua frente, me pareceu causado, sobretudo, pelo confronto. Ao desenrolar do filme é inevitável não nos colocarmos no lugar da personagem Vicente, vestir a sua pele. Quem é posto cara a cara com o espelho é mais do que a personagem, é o próprio espectador, que é lançado ao olho da velha indagação emblemática da esfinge: você conhece a ti mesmo? Ou pode ser devorado?
Pele. Revestimento. Proteção. Fragilidade. O nosso contato mais íntimo e direto com o mundo que nos rodeia. Nas deformidades traçadas em contato com esse ambiente, ora amistoso, ora perverso, fincadas e eternizadas em marcas, cicatrizes e queimaduras, definimos nossas digitais, indicamos aos outros quem somos. A sinalização do sujeito também se convalida ao próprio? A faceta da moeda é dupla: quem sou para os outros e quem sou para mim mesmo? A resposta talvez seja única. Talvez. Pode ser que não haja. Pode ser mensurável ou apreensível. Divagações à parte, a materialidade sugerida no filme é o que mais provoca: a deslocação é escancarada por uma cirurgia.
Os artifícios usados por Almodóvar para dar coesão à ideia proposta foram o que mais me prendeu. E o principal artifício foi o embasamento dado aos personagens em cena. Aqui ninguém é moçinho nem vilão. É possível, então, delimitar nesse contexto uma ética, uma moral, ou, mais a fundo, uma justiça? Inicialmente, Vicente é mostrado como o rapaz que estupra uma jovem, aparentemente perturbada, numa festa de casamento. Robert Ledgard é o pai da jovem abusada, que anteriormente estava internada em uma clínica de reabilitação, por ter presenciado o suicídio de sua mãe, que pulou da janela de sua casa. Na primeira oportunidade de ressocialização, o estupro. E a pele de vilão é dada a Vicente. Quando Robert seqüestra o jovem somos lançados ao questionamento: é justo? Tal indagação, já apresentada no igualmente bom “O Segredo dos Seus Olhos”, não é, entretanto, nem de longe, a dúvida mais instigante. É apenas o fio condutor; o estupro é um pano de fundo e adiante é praticamente redimido por outro estupro. Uma mórbida compensação.
O artifício estético de encadeamento narrativo colocado por Almodóvar (dessa vez muito mais feliz do que em “Abraços Partidos”, de estrutura também fractal) é o que resulta, materialmente, na transição de peles, papéis, máscaras. O olhar camaleônico que o espectador lança sobre um personagem não se equipara, também, ao olhar que um transeunte lhe projeta ao cruzar contigo na rua?
Transitando de 2012 a 2006, no desenvolver do filme, gradualmente as peças vão se encaixando num anestesiante e provocativo quebra-cabeças. Depois de seqüestrado e mantido em cativeiro, Vicente é submetido a uma cirurgia de mudança de sexo pelo cirurgião Robert. É então que nos damos conta de que a bela e sexy mulher do início da película é o boy que trabalhava em uma loja de costura. Mas, são a mesma pessoa? Quem é Vera? E, ainda, quem é Vicente? Quem sou eu? O que me define enquanto sujeito? As roupas que visto, os filmes que vejo, as músicas que ouço, as garotas que paquero, as brigas que venço, os livros que leio, as discussões que esquivo, os gols que marco? A pouco conversava com um amigo que me dizia que na Alemanha, após o escândalo do não-apagamento dos dados dos perfis do facebook e por uma provável utilização dos mesmos por analistas de empresas, alguns de seus amigos mudaram seus nomes na rede social, para não serem identificados. Um chegou até mesmo a apagar qualquer informação pessoal, deixando em seu mural apenas a informação: “Gender: male”. O gênero masculino, ou feminino, de acordo com aquele que agora me lê, é a informação básica que constitui nossa identidade? Qual, afinal, é a informação que o ser nascente Vera deixaria em sua página do facebook como alegoria de seu posicionamento no mundo, as digitais da pele de seu dedo? “Gender: female”?
Muitos outros aspectos despertados pela película poderiam aqui ser tratados, tal como a questão do reconhecimento com a imagem que sobre nós mesmos projetamos, tão presente na cena em que a falecida esposa de Robert tem de encarar sua nova identidade (nova pele) no reflexo da janela, ou a ligação que Vera projeta sobre Robert, em cima da qual poderíamos abordar intensos debates psicanalíticos. Mas, pelo pouco espaço a que devo me deter, sem dúvida, a impressão que mais se perpetuou em minha pele depois de assistir o filme de Almodóvar se iguala a tensão provocada pelas linhas de Lewis Carroll: “Tudo está tão esquisito hoje! E ainda ontem as coisas estavam tão normais... Será que durante a noite eu virei outra pessoa? Deixe-me pensar: Hoje de manhã, quando acordei, eu era a mesma pessoa? Tenho uma vaga lembrança de ter me sentido um pouquinho diferente. Mas se eu não for eu mesmo, a próxima pergunta é: Quem eu sou? Essa é que é a questão!”.


Um comentário:

  1. Será que nos tornamos (um pouco) do que queremos parecer? Será que (também) compreendemos melhor o que não somos quando nos modificamos para agradar ou desagradar? E quanto podemos suportar de estupros, de proteção, de bisturis, de doçura nas vozes... de violência e de violência travestida de compreensão/amor sem perder a identidade? E, ser íntegro está além do circunstancial?

    Sua reflexão de novo aumenta o desconforto, Heitor.

    Supondo que fosse possível saber exatamente quem eu sou... quem eu seria, então, diante deste abarcado?

    Acho que somos devorados, e devorados, e devorados...

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    Ao reconhecer-se Vicente, Vera...

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