sábado, 10 de março de 2012

Uma insignificante alegoria de coisas significantes

Logo que cheguei a Portugal os olhos prostraram-se perplexados com um mundo novo, ainda completamente inédito à minha visão. Estava eu no velho continente a procurar pelo novo, por aquilo que pudesse encontrar de diferente, tentando descobrir o que seria capaz de abrir meus horizontes. Procurando o novo, não pude deixar de mirar meus olhos no já conhecido, mas agora um pouco estranho pra mim. Não eram as mesmas coisas de outrora: quando não era por tudo diferente, o familiar me remetia às mudanças. Tudo mudou nas coisas, naquilo que meus olhos podiam alcançar, na vida. Foi então que notei aquele coração branco num fundo vermelho, nem um pouco estranho para um goiano do pé rachado, que por diversas vezes teve de pedir arrego do sol escaldante no gelado sabor de um Kibon. Mas ainda que conhecido, algo não estava certo: e esse nome? Abaixo do coração, o nome “Olá”.
Não que Portugal opere a estranheza do mundo oriental, russo ou muçulmano. Muito pelo contrário, afinal as marcas históricas de ligação da antiga metrópole com a terra da Tropicália são constantemente notadas e reafirmadas. Muito de Brasil se faz presente na terra lusitana. Por outro lado, contudo, diferenças existem e não são poucas. Desde as dificuldades (que com um pouco de boa vontade, logo se mostram passageiras) em compreender outro modo de pronunciar a mesma língua, passando por diferenças no próprio vocabulário dessa língua (acostume-se: em Portugal retira-se o fiambre do frigorífico para preparar o pequeno almoço, antes de apanhar o autocarro para ir ter com os amigos no liceu; no Brasil retira-se o presunto da geladeira para preparar o café-da-manhã, antes de pegar o ônibus para encontrar os amigos no colégio; percebeu/entendeu?), até diferenças subjetivas de cada povo. Sair da terra do samba fogoso do Carnaval e chegar no território do choroso fado, conota (com os perigos comuns a qualquer generalização) deixar para trás um povo feliz, capaz de rir nos momentos de maior tristeza, e encontrar um povo sério e um pouco amargo, que sempre conjuga o verbo no infinitivo (“estou a falar com aquele rapaz”/”ela está a cozinhar”), exceto em uma situação: quando indagado “e como está a vida?”. A resposta: “levando”.



Fazer intercâmbio na Faculdade de Direito da quase milenar Universidade de Coimbra (UC), foi a chance que tive de realizar muitas coisas para além do simples estudo. De todos os ganhos que tive, entretanto, o mais importante não foi na seara acadêmica, foi um ganho pessoal, de vida. O que me foi mais valioso durante os seis meses em que vivi em Coimbra foi me dar conta de que eu não estava em Goiânia, de que nem tudo era como é em Goiás e de que o mundo não é igual ao Brasil. Sentir na pele o quão plural, diferente, miscigenado e complexo é esse “mundão de Deus” foi, para mim, muito mais importante que as cadeiras cursadas na UC. E realmente senti, desde o início, assim que tive de dividir uma República com um alemão, um suíço, uma italiana, uma portuguesa, um brasileiro, uma belga e um esloveno (e desde aqui já começava a sentir a pluralidade na qual estava me metendo). Se Goiânia era pequena demais para mim e queria conhecer novas culturas, novos hábitos, outras palavras, visões diferentes e horizontes mais amplos, ter vivido em Portugal foi essencial.
Acredito que qualquer experiência inovadora nos dá ganhos inimagináveis. Um intercâmbio nos Estados Unidos, na África do Sul ou no Japão, sem dúvida seriam por demais significativos. Creio, contudo, que o contato com o desigual é ainda mais intenso quando se vai estudar na vetusta chamada Europa. Uma vez em solo europeu as possibilidades são infinitas e a chance de se deparar com o inusitado almejado é deliciosamente maior. Foi isso o que senti: que havia chegado à Europa, não apenas em Portugal. Além da “terrinha”, sabia que poderia conhecer sua vizinha ibérica, ou o charme do país da Rainha, ou a imponência de um lugar outrora dividido por um muro, quem sabe viver a elegância de se tomar um cafezinho mirando a Torre Eiffel, ou o Coliseu, talvez um passeio à Escandinávia, ou uma viagem mais ousada ao Leste Europeu, sem se esquecer dos encantos dos Alpes Suíços ou da exuberante história a saltar aos olhos na Grécia. É tanta coisa que o triste é a necessária amputação da escolha. Tinha de escolher, afinal não me seria possível abraçar o mundo todo em apenas um semestre.
Das quatro cadeiras cursadas na UC, talvez uma das que mais me tenha despertado a atenção foi “Direito da União Europeia”. Eu estava estudando a formação da atual Europa... na Europa! Longe da aridez de se estudar o Direito Europeu numa sala de aula no cerrado brasileiro, lá estava eu, entendendo como tudo o que estava vivendo havia se configurado e continua se desenvolvendo. Ainda hoje não sei se eram as aulas que me ajudavam a compreender melhor o fascínio do continente no qual pisava ou se, em contra-partida, era a prática do dia-a-dia que me dava um verdadeiro estudo de campo para tudo o que estudava. O que sei é que estando na União Europeia (UE), a magia da moeda única me proporcionou viajar a vários lugares apenas com  minhas notas de Euro, a carteira de residente me permitiu entrar e sair de Itália, Espanha, França e Alemanha sem quaisquer burocracias, e a identificação de estudante me deu entrada gratuito no Museu do Louvrée e no Museu do Prado.
A tamanha grandiosidade, sentida em cada suspiro quando me vi no coração da UE, em Bruxelas, entretanto, também me mostrou suas fraquezas. Apenas quando tive um vôo cancelado é que me dei conta de que estava em uma Europa ofegante, no olho do furacão de uma crise. No dia 24 de novembro tinha um vôo marcado para Londres, frustrado porque na mesma data ocorreu uma Greve Geral em Portugal. Consegui viajar à cidade das Olimpíadas aos trancos e barrancos, para uma semana depois saber que era a vez do Reino Unido inteirinho entrar em paralisação.
As marcas da tensão de uma crise efervescente estavam (estão) por todos os cantos e a pedido de uma grande amiga que, também em busca do novo, abandonara Goiânia rumo a São Paulo, em cada cidade que visitei procurei captar em fotografias um pouco do submundo, por vezes escamoteado ao olhar desatento do turista, de contestação, reivindicação e luta que ia encontrando. E encontrei uma manifestação pró-Galícia em Santiago de Compostela, uma passeata por boicote em Dublin e uma assembleia pró-Síria no gelo de -34ºC da capital norueguesa, Oslo. Encontrei também uma orquestra de músicos populares no metrô de Paris, uma cidade elegantemente contrastante: nunca imaginaria que no mesmo lugar em que veria a Monalisa, também iria ver placas com os dizeres “Cuidado com os batedores de carteira”.
Poderia seguir dizendo que encontrei muitos outros lugares, como as deliciosas águas de Veneza ou os canais da instigante Amsterdam, mas seria insuficiente porque, acima de tudo, encontrei a mim mesmo. Era o que dizia a trilha sonora de minha viagem à Bristol, onde, num reencontro com o passado, pude dar um abraço apertado num grande amigo que, pelas brincadeiras do destino, também não estava mais em Goiânia. Mas, lá estávamos nós, em Liverpool: eu e meu amigo na cidade de minha banda preferida, andando no Magical Mystery Tour e terminando o dia no The Cavern Club. “Find yourself”.
Minha primeira viagem para fora de Portugal foi à Itália e foi quando cheguei em Roma e me deparei com o familiar coração branco num fundo vermelho, mas dessa vez com o nome “Algida”, que percebi onde realmente eu estava. Podem os mais sérios, os mais científicos e os menos descontraídos, se queixarem: “mas como assim? Só foi perceber a diversidade da Europa por causa de uma marca de sorvete?”. Não, meus amigos, não é isso. Sei que dar uma grande importância apenas a uma marca de sorvete é demasiado exagerado. Mas, peço: não me leiam literalmente, a alusão ao “Kibon” é uma alegoria. Ou melhor: uma rica alegoria. A cada cidade descobria um país novo e um outro nome: Frigo (Espanha), Miko (França), Langnese (Alemanha), Wall’s (Inglaterra), HB (Irlanda). Isso mesmo: país diferente, nome diferente. Para muitos isso poderia passar despercebido, mas para mim, estudando a UE, as diferenças na nomenclatura do sorvete apontavam para a gigantesca gama de diferenças que borbulham no caldeirão multicultural europeu. A unidade na pluralidade. O que é senão o reconhecimento da mesma marca pelo símbolo em comum, sem deixar de lado os aspectos locais refletidos em nomes que de alguma forma remetem a aspectos nacionais? O coração no fundo vermelho, a bandeira azul com estrelas douradas. Depois de acompanhar in locu tantas diferenças (a caliente Espanha, a elegância francesa, a simpatia italiana, a bebedeira irlandesa, as delícias da culinária belga, a imponência do estilo alemão, a noite inglesa, as ciclovias neerlandesas, etc.) e dar conta de que apesar dos pesares, da diferença se fortifica a integração, foi impossível não sair das aulas do professor Jónatas Machado um europeísta de carteirinha.



A alegoria do sorvete também me fez pensar um pouco no meu Brasil: creio que praticamente todos em solo brasileiro devam pensar que a marca se chama Kibon e que é única, tal qual Coca-Cola ou McDonalds. Levam a vida a pensar isso (não que isso por si mesmo tenha lá grande relevância). Para mim isso representa um significado maior: não foram poucas as vezes em que me vi obrigado a praticar um inglês para manter contato com árabes, croatas ou chineses; numa distância equivalente a percorrida pelo brasileiro que vai de Goiás ao Rio de Janeiro (falando apenas o português!), poderia ir de Portugal à Suíça, passar por Espanha, França e Alemanha, encontrando uma infinidade de línguas e culturas diferentes. Encontrando nomes diferentes para o mesmo sorvete. Ou seja: um jovem português que se arrisca a fazer algumas viagens, por exemplo, por certo não pensará que a marca se chama Olá. E para você: o que isso representa?
Mergulhado no novo, ainda tive a oportunidade de aprofundar ainda mais o conhecimento do desconhecido. E lá estava eu voando rumo à África (outra barata facilidade permitida pela Europa). Em Marrakesh conheci a Medina, as letras do alfabeto l’arabic, não vi vestígio algum de cristianismo e fiquei anestesiado ao ver o pôr-do-sol de cima de um camelo em pleno deserto do Saara. Foi a expressão final de seis meses em que estive absorto, em contato com coisas que jamais pensei que viria.
Na Europa aprendi que o mundo não fala (apenas) português e que muitas vezes é preciso fazer-se entender. É preciso se comunicar. É preciso falar inglês. Na Europa conversei com um grupo de libaneses, com meninas da Coréia do Sul e com amigos belgas. Na Europa conheci pessoas novas e aprendi novas lições. “Você não está em Goiânia e nem precisa morrer em Goiânia”. Na Europa peguei um vôo para o deserto. Na Europa, ao encontrar o novo, a saudade doeu no peito e foi então que percebi o quanto gosto do meu Brasil e como amo minha terra. Em um semestre me encontrei. Sou brasileiro, sou goiano, sou europeísta. Sou do mundo.



Agora, voltando ao meu lugar, ao meu Brasil, à minha Goiânia, a expectativa de descobrir novos lugares, outras culturas e diferentes países, permanece ainda mais aflorada no peito. Primeiro quero conhecer outros países da América Latina. E uma coisa já me deixa curioso: como chamam os argentinos, os chilenos e os paraguaios aquele sorvete com um coração branco num fundo vermelho?




4 comentários:

  1. Me emocionei várias vezes, Heitor. Não sei se pelo que estava escrito ou por tudo o que estava implícito.

    Já disse que não conheço ninguém que tenha aproveitado tão bem uma estadia na Europa... eu mesma estive aí por duas vezes e participando das suas aventuras vejo que permaneci brasileira demais, goiana demais, elissa demais.

    É preciso abstrair-se um pouco de si (sic) para reconhecer-se no desconhecido, penso.

    Seus relatos e suas fotos me encheram de paixão. Tornaram impossível (continuar a) adiar minha viagem... Pena não poder mais usufruir da sua riquíssima companhia além mar...

    Conto os minutos pelo teu abraço.

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  2. Muito bom, Heitor. Também aprendi uma porção de coisas com suas viagens. Dá a impressão de como seria o Brasil se os estados fossem países. Cada um teria suas peculiaridades. E com certeza lá no sul, eles falariam outra língua (certeza absoluta).

    E o inglês quebra um galho mesmo, mas o duro são os sotaques. Dizem que é terrível entender o inglês dos orientais! Mas bacana você ter se perdido e achado por lá - o que eu, seu irmão (os dois) e mais meia dúzia de fãs dos sorvetes Kibon saberia que ia acontecer.

    Ainda quero saber uma porção de coisas das suas aventuras, mas tem de ser pessoalmente. Saber da vida, dos novos conhecimentos e dos amores ocultos deixados além do oceano. É, nem vem, certeza que andou aprontando por aí!

    Pois é, filho da Terra, cidadão do mundo! Esperando com um pezinho de pequi du bom!!

    P.s.: Essa música é um plágio dessa aqui: http://youtu.be/FclrtPUquhQ

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  3. Muito legal, Heitor!
    Mais ainda por compartilhar cada coisa desse texto e passar um filme na minha cabeça. Impressões, sentimentos e vontades também, como de continuar a explorar o que esse mundo tem por aí.
    E seu texto ficou incrível com o coraçãozinho branco e o fundo vermelho permeando todo o encanto e pluralidade da Europa.
    E, confesso, nunca tinha entendido "ir ter" dos portugueses. Uma vez meu amigo me mandou uma msg usando isso e achei super estranho. Agora que entendi! E ele achou que estava dando de desentendida qdo eu respondi dizendo que não "percebi, o pá".
    Enfim, parabéns! Que bom que escreveu sobre sua experiência!
    Beijo,
    Nádia

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  4. Oi Heitor!
    Não o conheço, mas o fascínio descrito em suas palavras me mostrou um mundo que eu acreditara saber não existia mais. Tenho grandes pretensões em fazer o meu Mestrado na Universidade de Coimbra e agora muito mais. Um grande abraço e sucesso na vida.
    Welliton Santos

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