sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Qual das cápsulas? A azul ou a vermelha?



Now it's time to leave the capsule if you dare. A cápsula da canção de Bowie talvez seja o óvulo colocado a observação do cientista ou a carne exposta ao abrigo do vidro, transparente, mas acobertador. No longa-metragem de Tom Tykwer, contudo, a cápsula a ser rompida é a mesma que nos reveste enquanto sujeitos lançados a um mundo tão bem delimitado, com regras a serem seguidas, espaços a serem ocupados e uma normalidade a ser resguardada.
O filme “Drei” nos lança o desafio de radicalizar e romper, deixar para trás todos os valores tão bem consolidados que temos do que é normal, do que é aceitável, do que deve ser respeitado. Fugindo de qualquer discurso de tolerância, o filme vai muito mais além e realmente coloca em xeque a questão da sexualidade. Diplomático de forma alguma, “Drei” é profundamente poético, tanto em seu aspecto estético, com tomadas numa imensidão branca ou enquadramentos de três pequenas cenas a rolarem simultaneamente, quanto em sua materialidade que, em primeira e última instância, ousa. A sexualidade, a vida, os valores, as regras, a sociedade: tudo é desnudado e colocado em foco, num grande fundo branco. O branco é senão o puro, o transparente, não impregnado de regras e normatividades a estancá-lo.
A primeira impressão que me perturbou diz respeito ao novo. Apresentados a um casal que trás consigo o peso de vinte anos de vivência desde o primeiro beijo, refletido em uma rotina desgastante e constantes momentos de dissolução do romantismo de outrora, postos um a frente do outro como um fardo, pesado. Mas, aqui não é um lado que busca se conhecer (ou se reconhecer, se resgatar) em um terceiro elemento. São os dois lados. A dupla presença, entretanto, não existe. É o um ou é o três. Independentemente, ela encontra Adam e ele encontra Adam. A vivência a dois é apenas o pano de fundo a fomentar a necessidade de rompimento, que será entendida, dolorosamente ou não, no silêncio de uma sala de cinema, alone. Ou nas lágrimas a escorrerem depois de digerido o novo. É um verdadeiro parto com as velhas concepções que arraigadas em nossa própria construção de subjetividade se impregnam como uma pele a nos habitar. O novo que se relaciona com o velho. Não é atoa que um antigo caso se mostra paralelamente ao momento em que a primeira transa acontece.
E o filho teria, hoje, 17 anos. Como foram vividos, contudo, estes últimos 17 anos? No impacto da morte materna, a descoberta da pericidade da vida, a escorrer em um recipiente: aquele que do lado de fora estampa uma etiqueta com o dizer “normal”. Mas, esta é a normalidade? O que é, afinal, ser normal? Somos esse líquido contido e etiquetado? Devemos nos colocar nesse recipiente, enquanto nos vemos dissolver, como um testículo a ser amputado?
No olho do furacão de um Brasil borbulhando em discussões a respeito da possibilidade legal ou não do casamento homoafetivo, das críticas a lei da anti-homofobia, da pronunciação do STF a cerca da adoção por casais do mesmo sexo, “Drei” vai ao cerne da questão: o que tudo isso nos mostra não é a nossa obrigação de questionar, discutir e colocar em xeque os valores aos quais tradicionalmente fomos expostos? A sexualidade é mais ampla e complexa, e olhá-la unicamente sob o ângulo da heteronormatividade é questão de posicionamento, político, cultural e social, que trás consigo interesses a serem preservados.
Dias atrás, numa conversa de bar, o amigo de um amigo pôs-se a falar contra a “abertura à causa homossexual” no direito brasileiro. Citou, entre vários argumentos, que transitavam entre o racionalizável e o religioso, a defesa do que é natural. Ora, “Drei” questiona exatamente isso: “Às suas ideias deterministas de biologia”, é o que aquele que trás (trás? liberta? demonstra? Na verdade não trás nada, apenas ajuda a aflorar aquilo que vem da autodescoberta subjetiva) o “novo” diz ser preciso abandonar. Dizer adeus. Talvez seja a isso que a bancada religiosa de nosso velho país esteja precisando fazer: dizer good-bye.
No bojo de bons filmes que vejo atualmente a trazer à discussão a complexidade que faz parte de nossa sexualidade, como já apontada nos estudos de Kinsey, “Drei” me trouxe à lembrança o bom “Shortbus”. Ao questionar a fruição verdadeira do orgasmo e tudo o que isto compreende, em seu ponto de epifania, todas as luzes se acendiam. Aqui, em “Drei”, ao fazer o rompimento com a “naturalidade”, passamos a conhecer melhor “quem eu sou” e, em três, quem nós somos, todos nós. Em três as luzes se ligam. E abre-se ao fundo a música de Bowie. “Agora é a hora de sair da cápsula se você ousar...”.


3 comentários:

  1. Justamente, um filme que vai muito além do discurso sobre tolerância, já vi vários desses e costumam seguir sempre a mesma forma, as vezes até os mesmos argumentos. O que nos prende em Drei é a poética do filme. Comecei a assisti-lo apenas para ver a abertura, tamanha minha curiosidade, pois tinha um compromisso marcado. Não resisti, me atrasei para o compromisso pois só percebi a noção do tempo depois de quase 40 min de filme.
    Parando para refletir é possível ver que o filme é bem completo, aborda desde o primeiro momento de confusão, interpretado perfeitamente por sinal, até a abordagem da sexualidade apenas como um fato normal, uma característica a mais. Afinal a grande discussão e causadora da perturbação não é o fato de dois homens se relacionarem, é o fato de amarem 2 pessoas diferentes. Se a questão da sexualidade é uma capsula, a do amor é uma muralha. Amor trio esse que inclusive salva um casamento! A sagrada instituição consagradora da união de duas pessoas em uma. A mulher só aceita se casar depois que conhece o terceiro elemento, aquilo que faltava, mesmo já estando junta do outro há 20 anos.
    Enfim, uma obra realmente fantástica o texto descreve bem a impressão que tive com o mesmo.

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  2. Assisti Drei pela segunda vez em um fim de semana. A sala estava cheia de muitos casais idosos como na silenciosa segunda-feira desconcertante, mas, desta vez, muitos jovens completavam os acentos.

    Eu queria me concentrar ao máximo. Abarcar tudo o que fosse possível. Absorver, absolver tudo o quanto pudesse suportar. Mas as pessoas riam. Riam em muitos momentos. Isso não tinha acontecido na primeira sessão. E eu estava emocionada com a ameaça constante à vida e à morte das pessoas, das coisas, das identidades...

    As risadas me irritaram até que comecei a prestar atenção nas pessoas presas aos seus lugares, que desconforto. O casal do meu lado era o retrato da falsa intimidade... Risinhos que afastavam qualquer daquelas possibilidades do pensamento dele, do desejo dela, da existência normal do casal.

    Recipientes quebrados(interpretei arrogantemente) talvez fosse preciso assistir novamente, em silêncio...

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  3. E o texto não facilitou a reflexão, caríssimo. Tornou-a mais complexa...

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