terça-feira, 4 de janeiro de 2011

No meio do motor havia uma válvula...

Ao funcionar, o motor de um carro sofre, gradativamente, um grande aquecimento, que é contido por toda uma engrenagem que funciona como um sistema de refrigeração. A partir de um ponto limite de aquecimento, uma espécie de ventiladorzinho, a ventoinha, é acionada, de forma automática, para impedir o superaquecimento do motor. Acontece que, para ser acionada a ventoinha precisa ser impulsionada e, nessa trajetória, pode encontrar como obstáculo a válvula termostática. Poucas pessoas, com toda certeza, possuem tais conhecimentos e, certamente, a família Rodrigues não os tinha.
Durante aquele feriado prolongado, de fim de ano, eles conseguiriam enganar a si próprias e estampar a alcunha de família unida e feliz. Talvez, quem sabe, até eles acreditassem nisso. Quatro dias para despedir de um ano e esboçar planos para mais 365 dias. Quatro dias para conviver amigavelmente como uma doce família e, tentando ignorar o tempo perdido ao longo de quase 360 dias separadamente divididos por intensas rotinas, trocar conversas e atualizar assuntos. Quatro dias para reverem parentes e tentar descontar prejuízos de uma singela distância de pouco mais de três anos sem dar as caras.
O filme estava em reprise e os garotos já o sabiam de cor e sorteado: desde a infância sempre era assim. A viagem da família era a viagem do pai e da mãe. Era a viagem a qual os pais poderiam rever seus inúmeros parentes do tempo da juventude na roça. Num passe de mágica, sujeitos transformados instantaneamente em parentes e, claro, a exigência da simpatia e elegância. Dizia a mãe: “Filhinhos, vocês devem pedir a benção para seus parentes”. Sem alternativas, explodiam por dentro, e por fora pediam, comportada e simpaticamente, a benção aos desconhecidos, ou melhor, aos temporariamente conhecidos. Os ossos do ofício, no caso os ossos de família, que deveriam ser roídos, ainda que duros. Ossos como ficar cerca de uma hora – três bilhões de ano, uma Terra inteira para se construir – ouvindo conversa de dois senhores, o pai e o tio, que exigiam esporádicos comentários que atestariam o interesse dos jovens pelo assunto. Três bilhões de anos para um almoço ficar pronto e a comida ser servida!
Quando saíram da pequena cidade natal, Araguari, o pai e a mãe esbanjavam um largo sorriso como a estampar a certeza de dever cumprido e missão bem realizada. Os filhos também estavam felizes, certamente pela certeza de que por cerca de três anos estariam livres do ritual. Mas a onda do mar baixou na praia e dissolveu o castelo de areia, e a aparente (mas tão frágil) felicidade se foi quando, já no estado de Goiás, a esposa para o carro no acostamento.
Domingo, duas da tarde, rodovia, ameaça de chuva, tempestade. A mulher, que nos últimos tempos quase não estava mais dirigindo, dessa vez decidiu conduzir o carro da família, uma antiga Parati. Pequeno-burgueses, classe média baixa, os Rodrigues estavam mudando de residência, construindo uma nova casa, e a condição financeira nunca foi das mais agradáveis, daí a escolha pelo carro antigo. A escolha, entretanto, esconde muito dele também, do pai. O patriarca, talvez por ter crescido comendo “o pão que o diabo amassou”, trouxe consigo para a cidade grande um incrível “espírito de pobre”, como dizia o caçula. Os garotos cresceram se acostumando com o pai contando até as moedas, tampando o sol com a peneira quando algum problema apresentava; em seu entendimento, evitando gastos maiores. Quando o chuveiro queimava o pai evitava ao máximo chamar um técnico e só o fazia quando via todas as chances de obter sucesso mostrando seus dotes eletricistas irem por água abaixo. O máximo que geralmente fazia era contratar algum parente para resolver a pendenga. Por isso, antes da viagem levou a Parati para o compadre revisar. Naquele momento, ele lembrou: ainda perguntara ao compadre o que era aquela água escorrendo pelo pneu, mas, até mesmo pela grande confiança no sangue, na família, se acalentou quando alertado que se tratava apenas da água da chuva.
A matriarca, como dito, quase não mais dirigia o carro e naquele momento estar na direção poderia ser um verdadeiro milagre, talvez o único a ocorrer naquela tarde. Isto porque, medrosa como era, ao perceber o sinal da temperatura brilhando em vermelho fogo no painel do motorista, logo parou o carro, seguida por um cheiro inconfundível de borracha queimando. Se o dedinho de Deus não agisse o pai estivesse dirigindo o veículo, turrão como era, provavelmente só pararia quando o motor fundisse. Às vezes era questão de honra, afinal vindo de uma família conservadora e machista ao extremo, precisa mostrar que estava tudo sob controle, sob controle dele. Também por isso precisou, nos momentos seguintes, mostrar que entendia um pouco de mecânica e do funcionamento de um carro. Até palpitou certo: talvez faltasse água no tanque de refrigeração do motor. Não demorou, contudo, perceber que o buraco era mais embaixo e que precisariam levar o carro até algum mecânico.
Sabiam que estavam pertos de Mazargão, talvez faltasse pouco menos que três quilômetros. Decidiram – o pai decidiu – arriscarem e, então, conseguiram chegar até à borracharia da cidade. O plano já não daria mais certo: quando almoçaram na casa do padrinho do pai, pensaram sair rápido para não pegar um forte trânsito de volta do feriado, mas, agora a chuva se aproximava, o tempo passava e o medo de, quando o carro ficar bom, se ficar, pegarem um congestionamento, se fazia presente.
Na pequena borracharia, à beira do trevo de Mazargão, conheceram a figura: seu Osvaldo. Moreno humilde e conversador que indicou: “O reservatório de água está furado. Só vou soldar ele e depois vocês já podem seguir viagem!”. Depois disse que, talvez, o problema não fosse só esse e envolvesse a tal da ventoinha. Nesse caso, teriam que remexer no motor para tentar retirar uma coisa chamada válvula termostática.
Abriram as cortinas e começou o show. Tudo como imaginado pelo filho: querendo dar uma de macho-alfa da família, o pai logo começou a conversar com seu Osvaldo, puxando altos papos, rememorando a goianidade e destrinchando o Tinoco, alguém que perceberam ser conhecido de ambos. Parecia quase inevitável – era necessário – e o pai punha-se a dizer: “Estão vendo, meus filhos, é assim que se faz. Prestem bastante atenção no que o seu Osvaldo está fazendo”. E com um largo sorriso, como que dizendo “estou zelando pela paz de minha prole”, voltava-se para a conversa com o desconhecido amigo íntimo.
Quando seu Osvaldo disse que o problema realmente era a ventoinha, com tamanha demora a mãe decidiu sentar no banco da rodoviária ao lado e se afastar um pouco. Foi rezar. O caçula acompanhou a mãe. Foi pensar. Pensou na peça-de-teatro que estava vendo à sua frente e, principalmente, no papel desempenhado pelo pai. Passou do pai ao simpático borracheiro. Como ser tão simpático assim? Viu-se no meio de uma farsa, duplamente aceita e sigilosamente correspondida.
Depois de mais de duas horas e de uma espera corrosiva, a válvula termostática foi retirada e a ventoinha estava pronta para ventilar. A família estava pronta para partir. Antes, contudo, a peça deveria ser encerrada e o ato final era o mais importante: o patriarca perguntou ao mecânico quanto havia ficado o serviço. Não hesitou: 150 reais! “Mas, como?!”, se indagou o garoto. O pai, porém, também não hesitou em pagar a quantia posta, para a surpresa de todos. A atitude do muquirana deixou perplexo o caçula, que a essa altura do campeonato tinha certeza que um pequeno problema no tanque de água do veículo foi transformado, malandramente, pelo mecânico em uma saga de horas a fio e uma válvula – além de um gordo orçamento.
Antes de saírem, talvez pela primeira vez, o garoto fitou seus olhos nos olhos de seu Osvaldo e este lhe deu um sorriso. Um sorriso irônico, talvez. Não, um sorriso de necessidade. O menino percebeu, então, os papéis desempenhados na peça, o papel de sua família e o papel do moreno. Deu-se conta, também, de quem mais havia lucrado com toda a situação.
Os Rodrigues voltaram ao itinerário e no carro o pai disse: “Vocês perceberam, filhos, o quanto foi importante prestar atenção em tudo o que o seu Osvaldo dizia?”. Na saída de Piracanjuba o carro parou de novo.


3 comentários:

  1. Ah, eu adorei essa família.

    O pai é uma figura que desempenha muito bem seu papel (em suas fragilidades, tem tanta força), a mãe é doce, tem aquele estoque de fé que a gente sempre precisa um dia e os filhos são queridos.

    Este blog ficou lindo, hein? Beijos!

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  2. Que legal o texto, Heitor.
    "A mãe foi rezar. O filho foi pensar."
    A Heloisa tem razão, é bonita. Frágil e difícil.
    Boa sorte com o blog!

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