sábado, 8 de janeiro de 2011

O que veio depois da criação?

O OITAVO DIA

título original: Le Huitième Jour
lançamento: 1996 (Bélgica, França, Inglaterra)
direção: Jaco van Dormael
elenco:
Daniel Auteuil (Harry)
Pascal Duquenne (Georges)
Miou-Miou (Julie)
Isabelle Sadoyan (Mãe de George)
Michele Maes (Nathalie)
Fabienne Loriaux (Fabienne)
Hélène Roussel (Mãe de Julie)
duração: 118 min
gênero: Drama



O drama francês “O Oitavo Dia” se apresenta como uma crônica do dia-a-dia que vive o sujeito da contemporaneidade, do indivíduo que se vê mergulhado em um mundo de alta versatilidade, conexões e possibilidades, mas que, ao mesmo tempo, media sua vida por uma gama de responsabilidades e compromissos que se acumulam em seu cotidiano de tempo, rotina e relógio.
O filme centra seu roteiro em dois personagens principais que, a primeira vista, dificilmente poderiam manter qualquer tipo de diálogo: Georges é um garoto interiorano simples, com uma baita imaginação e que nutre, por meio do universo musical, a saudade imensa que possui de sua mãe, morta anos antes; e Harry é um empresário da cidade grande, bem sucedido profissionalmente e que está vivendo um grande fracasso em sua vida pessoal, tendo sido abandonado por sua esposa e, após sucessivos esquecimentos sob a desculpa de compromissos no trabalho, ganha o desprezo de suas filhas pequenas. A grande sacada do filme se encontra aí: nas diferenças que é possível verificar entre a vida de Harry e de Georges, o comportamento de ambos perante as contingências dadas e a forma como os dois se unem numa relação ingênua, pura e bela.
Georges possui problemas que a priori indicariam uma vida triste e amargurada, mas o que se vê é um rapaz feliz e que encontra tal felicidade nas coisas mais simples da vida: no apalpar a grama, no tocar uma árvore, no sentir a água do mar e a brisa do vento. Dono de uma sensibilidade gigantesca, Georges colore o seu mundo e encontra sentido para continuar na difícil travessia, e, como um anti-herói de Samuel Beckett, se depara com diversos momentos em que parece se abater. Destaque para aqueles momentos em que suas diferenças parecem representar uma repulsa a sua imagem e uma aparente impossibilidade de felicidade, como nas cenas em que o rapaz se encanta por algumas mulheres ditas “normais” e estas demonstram uma repulsão muito grande ao se dar conta de com quem estão lindando.  A simplicidade de Georges desconstrói, abala as estruturas e as armaduras das pessoas, o seu olhar ingênuo encanta, e sua doçura desperta a amizade de Harry.
Harry é o típico atarefado, sujeito que vive para o trabalho, o bem-sucedido profissionalmente, enquadrando aqui qualquer tipo, desde o Juiz Federal até o engenheiro de uma multi-nacional. Harry é a expressão de um tempo: de um período que dissolveu a subjetividade e a autenticidade do sujeito em prol de números e resultados práticos e o mais rápido possível. Harry é o indivíduo da produtividade, da educação bancária tão criticada por Paulo Freire. É um importante chefe de departamento de um banco, o Future Bank (nome bastante sugestivo), e ganha sua vida proferindo típicas palestras de auto-ajuda, sem se dar conta de que quem realmente está precisando de ajuda é o próprio. Vende um produto, uma idéia, a do vendedor bem-sucedido, e acaba por incorporar o sistema, como bem dito por sua mulher, Julie, em uma cena da película. Harry e Julie se separaram recentemente e o motivo alegado é que esta não aceita que sua vida se resuma a simples sobreposição de fatos cotidianos, ao seguimento de uma rotina tão bem estruturada no filme pela repetição de cenas que indicam o começo do dia, com data, horário e temperatura da cidade. Julie quer mais, quer uma vida de verdade, quer a felicidade de não viver preso nas responsabilidades que criamos a cada dia.
Após um encontro ocasional, no qual Harry, cansado de sua “vidinha” arrisca-se pela primeira vez, dirigindo às cegas numa noite chuvosa em que acaba por atropelar o cachorro de Georges, a morte inicial representa o início de uma vida: o cão morre e Harry nasce para uma vida de verdade. O relacionamento dos dois não é nada fácil, sobretudo pelas especialidades que Harry deve ter no trato com Georges. Exemplo emblemático é a tentativa de abandono que ocorre ainda no início do filme, seguido por uma das cenas mais emocionantes, na qual Harry retorna ao local em que havia deixado Georges e ao, encontrá-lo debaixo de chuva, os dois se abraçam emocionados e Georges se refere a Harry como um “amigo”.
Talvez a maior ironia do filme esteja contida em uma cena na qual a personagem Fabienne, a irmã de Georges, diz que não pode ficar com o garoto, pois a vida com este seria um grande peso, impossível de se realizar. Acontece que, com Harry, é exatamente o contrário que ocorre: é ao lado de Georges que esse aprende a viver, uma aprendizagem digna de Clarice Lispector; aprender os prazeres da vida e como os desfrutá-los da melhor forma possível; aprender a rir das situações esnobes da vida (como bem o faz já no final do filme, quando os “excepcionais” invadem a sala onde o empresário estava palestrando); e a curtir intensamente cada momento, cada mordida em um chocolate. Aqui, talvez, se encontre uma crítica às problemáticas jurídicas: possuímos a tendência de tudo normatizar e tentar enquadrar em esquemas pré-constituídos de felicidade, e dificilmente percebemos que ser feliz, às vezes, exige o rompimento de uma normatividade que nos recalca, nos limita e nos amputa. Uma cena que expressa de forma fantástica esse pensamento é a da lanchonete, na qual Georges com toda sua simplicidade come batatinhas livremente com a mão e depois de “desafiar” uma garotinha à distância, acompanha o pai da referida menina a reprimindo para que não coma daquela forma.
O filme se desenrola, então, a partir da aprendizagem que Georges promove a Harry, isto mesmo: é Georges quem ensina a Harry, é o “mongol” que ensina ao homem de terno. Ou melhor: é uma dupla aprendizagem, um ensinamento de mão dupla, pois Harry, em diversos momentos, também ensina Georges, ensina a ter força, ensina o sentimento que pode estar guardado em um abraço.
“O Oitavo Dia” é assim: um filme simples, como a história que pretende contar. Um filme que faz uso de imagens musicais, devaneios, cenários paralelos, uma linda fotografia e um roteiro que nos pega do início ao fim, em uma condução impossível de não se emocionar. Não é atoa que o filme foi o primeiro (e único) a dividir o prêmio do Festival de Cannes de melhor ator, que foi dividido entre Daniel Auteuil e Pascal Duquenne.
Último destaque para o fato do filme realmente conseguir sensibilizar (e muito) sem se apegar na apelação sentimentalista com o fato do personagem Georges possuir Síndrome de Down: o nome da síndrome sequer é dito ao longo de todo o filme, afinal, o tema central do filme não é a síndrome ou o personagem excepcional, e sim a discussão a respeito das relações humanas atuais e sua fragilidade e efemeridade.
P.S.: difícil entender o título do texto sem ver o filme. Confiram!


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